Artesão de Nós

Crônicas - Por Vai Ali

20/07/2017

O primeiro nó que se desabotoa quando chega em casa é o da garganta. Digo, da gravata. A gente precisa respirar e aquilo incomoda. Já tivemos que passar o dia inteiro no trabalho com aquilo incomodando a garganta. Uns usam, também, pra enfeitar, se acham bonitos com aquilo. Mas devemos sempre estar elegantes! Cada um, elegantemente com seu nó na garganta – digo, na gravata – uniformemente em nossos escritórios. O que eu acho mais irônico nisso tudo é todo o processo que envolve isso.

Primeiro, você gasta uma boa quantia de dinheiro investindo em estampas diferentes. Umas mais ousadas e com cores mais vivas para as prospecções de clientes, outras mais escuras e sóbrias para as reuniões com o chefe. Tudo semioticamente comprovado pelos estudos de comportamento.

Aí você acorda cedo, com o sol por nascer, escuta aquele barulho infernal do despertador que só serve pra te tirar do único momento da sua vida que você tem pra descansar e, metaliteralmente, sonhar.

Bonito esse termo, né? Metaliteralmente. Um paradoxo em si. Ou é metafórico ou é literal. Que diabos seria metaliteral? Eu não sei, mas eu inventei esse termo e ele soa inteligente. Se eu digo que o fulano literalmente voou em campo, estou errado. É metafórico. Então ele literalmente correu muito em campo. Isso é literal. Mas olha que coisa sem graça. Uns tentam consertar a monotonia do literal com a metáfora, em uma expressão fantástica e exagerada; outros corrigem os que acham que o universo devia ser fantasioso.

Por isso que eu inventei esse termo. Metaliteralmente. É a mistura da fantasia concreta. Aquela, que permite, dentro da minha cabeça, ver o fulano voando em campo, tendo a plena consciência que ele estava apenas correndo.

Mas eu estou divagando, acho que isso não deve ter nada a ver com o nó na garganta. Digo, da gravata.

Depois de acordar e ver seus sonhos destroçados e esquecidos – com sorte você lembra da angústia de apenas um ou outro detalhe, mas isso eu deixo pra Freud. Depois de ter esquecido daquela paradinha bacana que você sonhou, você veste uma camisa branca que dificulta seus movimentos, cada vez mais recortada pra encaixar no seu corpo esteticamente produzido. Na vida coorporativa, ela te dá força: força pra enfrentar seu chefe, força pra criar uma nova estratégia, força pra te lembrar que você está ali para levar o pão que o padeiro assou pra sua amada esposa. Literalmente uma camisa de forças. Digo, metaliteralmente. Digo, metaforicamente. Aliás, esse termo, METAFORICAMENTE não devia ter esse adjunto adverbial de modo. Esse modo é mentiroso. A metáfora não mente.

Mas, voltando ao nó da gravata. Digo, da garganta. Depois de abotoar aquele último botãozinho que fica travando o seu gogó, impedindo de engolir as coisas de forma natural – vem tudo a seco, tudo goela abaixo – você se olha no espelho durante um bom tempo. Aliás, não há mulher alguma no mundo que passa mais tempo se olhando no espelho que o homem ordinário. A gente acorda, joga água no rosto, olha pro espelho; enxuga o rosto, olha pro espelho; passa a espuma de barbear, olha pro espelho (e se imagina o pai do Popeye, o que demora muito tempo, no espelho); faz cautelosamente a barba, sempre olhando no espelho; primeiro deixa o cavanhaque; depois brinca de Tom Selleck; depois de Hitler; exágua; enxuga, dá dois tapinhas no rosto; vira pra um lado; vira pro outro; passa o pós barba. Olho no olho, como dois inimigos que não podem nunca perder a atenção, senão o outro ganha a luta. Você reflete.

Aí vem a gravata que você ganhou da sua esposa de aniversário, como prêmio por ralar 8 horas por dia e ser um bom marido. Engraçado como funciona o processo de dar o nó na garganta. Digo, na gravata. Você começa com aquele pedaço de pano colorido, confortavelmente escorrido pelos seus ombros. E dá um laço, se olha no espelho; dá outro laço, continua se olhando no espelho. Refletido, ali, você tece um balé de seda e cede à sede. A trama que suas mãos delicadamente amarra te dá uma sensação de onipotência, encarando o seu inimigo do espelho e dizendo “você agora é um homem de negócios, meu chapa!”. O talento nartural para fazer aquele nó perfeito, Windsor, Meio Windsor, Windsor completo, Kelvin, Nick, Oriental, Sto André… todo mundo tem um nó com seu nome. Você percebe, ao longo do tempo, que se tornou um exímio artesão de nós de garganta. Digo, de gravata. E, de tão talentoso, já criou um com o seu próprio nome.

Aí vem a machadada do carrasco. Você se olha no espelho, agarra-se às pontas da gravata com a mão direita e, com a sinistra, puxa aquele nó até a garganta.

Com cuidado, ambições e uma materia prima equilibrada e natural, você se torna um excelente artesão. Começa com um tecido bonito e uma arte de se desdobrar. Termina em dificuldade de respirar, com orgulho e angústia, com reflexo e opção. E com toda a inconsequência calculada da vida programada, você se torna, metaliteralmente, um artesão de nós.

Agora, eu não consigo nem dizer sobre o absorvente. Aquilo ali, meu amigo, com ou sem metáfora, deve incomodar pra cacete.

 

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Tiago Sarmento é um ávido apreciador de revestrastróis e flavonóides, lúpulo e fermentados que já atingiram a maioridade. Além disso, é músico e faz uns boho folks aqui e ali autorais com umas releituras que vão desde Almir Sater a Black Sabbath. Quando sobra tempo entre o vinho e a música, dedica-se ao seu doutorado em Teoria Psicanalítica. 

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