Eletrobrás: por que rechaçar a privatização

Crônicas Cultura - Por Vai Ali

23/05/2022

Por *RONALDO BICALHO

(Texto publicado no períodico OUTRAS PALAVRAS)

Com robusta capacidade de estocar energia e sistema de transmissão que conecta o país, a estatal será essencial para a transição energética. Mas governo quer entregá-la a mãos privadas – e implodir chances de reconstruir o Brasil.

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A privatização da Eletrobras restringe de forma decisiva as possibilidades de acesso da sociedade brasileira à energia necessária ao seu desenvolvimento econômico e bem-estar.

Em um momento de profundas transformações no setor elétrico aqui e no mundo, a privatização da estatal elétrica brasileira aliena um conjunto de ativos decisivos para a redução dos custos da transição energética no país. Essa privatização irá jogar todos esses custos não só no colo da economia brasileira, reduzindo a sua competitividade, mas, principalmente, sobre os ombros das parcelas mais vulneráveis da nossa sociedade.

Para entender a magnitude dessa privatização é preciso compreender o que se passa no setor
elétrico no mundo e no Brasil e a importância de determinados ativos que atualmente são controlados pela Eletrobrás.

O setor elétrico no mundo atravessa uma quadra de mudanças profundas. Para essa atividade
vital para o desenvolvimento econômico e para o bem-estar da sociedade, esse é o momento mais desafiador desde o seu nascimento no final do século XIX.

As restrições cada vez mais severas impostas ao uso dos combustíveis fósseis para fazer face à urgência da redução do aquecimento global impõem ao setor uma mudança de base de recursos naturais que tem drásticas implicações tecnológicas, econômicas, organizacionais, institucionais, políticas e sociais.

O Pico dos Combustíveis Fósseis deve acontecer antes do esgotamento das  reservas, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

As energias renováveis e os combustíveis fósseis apresentam atributos técnicos e econômicos bastante distintos, sendo muito difícil considerá-los como substitutos próximos entre si. A intermitência, característica essencial desses fluxos aleatórios associados às renováveis, reduz radicalmente a previsibilidade e o controle dos insumos de geração. Em comparação com os combustíveis fósseis, que são estoques, as energias renováveis introduzem a necessidade de os sistemas elétricos desenvolverem uma flexibilidade gigantesca para fazer face a essa incerteza acerca da disponibilidade dos insumos.

Em função disso, a transição energética em direção a uma matriz limpa e renovável é um processo em aberto, pleno de incertezas, riscos econômicos e tensões sociais e políticas, que exige inovações radicais tanto no âmbito tecnológico e econômico quanto na esfera regulatória e político-institucional. Somente essas inovações podem gerar uma redução objetiva no trade-off que existe hoje entre o enfrentamento do aquecimento global e a garantia de acesso à energia. Concretamente, sem inovação não é possível diminuir os custos da transição e, com isso, avançar na marcha em direção às energias renováveis. Fora isso, o que sobra é a cada vez mais tensa e penosa gestão dos conflitos de interesses patrocinados pelas instituições. E haja instituições.

Embora a matriz elétrica brasileira seja renovável, a partir da nossa opção histórica pela hidroeletricidade, o país não está fora desse debate. Pelo contrário. Os mecanismos desenvolvidos para lidar com a intermitência da energia hidráulica foram se esgotando na medida em que a capacidade de estocagem dos nossos reservatórios não acompanhou o crescimento da demanda de energia. A construção cada vez mais comum de hidrelétricas sem reservatórios, principalmente na Amazônia, por razões técnicas, ambientais, sociais e políticas, fez com que crescesse a exposição do sistema ao risco hidrológico. Esse crescimento inviabilizou a manutenção da energia hidráulica como o pilar central e exclusivo da matriz elétrica brasileira (historicamente, as outras fontes foram apenas complementares), demandando uma mudança dessa matriz para enfrentar esse problema real e concreto do abastecimento elétrico do país.

Usina hidrelétrica – Wikipédia, a enciclopédia livre

Considerando que a ampliação significativa da participação das térmicas representa concretamente uma carbonização da matriz brasileira, em um movimento completamente extemporâneo quando se observa a descarbonização que ocorre no mundo hoje, o Brasil, para resolver o seu problema específico, terá que recorrer à mesma solução geral aplicada no mundo todo: ampliar fortemente a participação das novas energias renováveis (eólica e solar) na sua matriz elétrica.

E isso é algo extremamente positivo, quando se leva em conta que para esse enfrentamento, o Brasil detém recursos valiosos. Recursos que foram sendo adquiridos ao longo de toda a evolução da atividade elétrica no país.

Em primeiro lugar, o Brasil detém uma capacidade significativa de estocagem representada pelos reservatórios. O país pode armazenar mais de 40% da sua demanda de energia elétrica nos seus reservatórios.

Em segundo lugar, o Brasil tem as centrais mais rápidas e flexíveis, que são as hidrelétricas. As turbinas hidráulicas são aquelas que entram e saem de operação mais rápido e aumentam e reduzem a carga com mais facilidade.

Em terceiro lugar, o Brasil apresenta um sistema de transmissão que interconecta praticamente todo o país (isolado encontra-se apenas o estado de Roraima). Isso dá uma flexibilidade espacial crucial na integração de fontes intermitentes; em geral, dispersas, algumas vezes
distantes da demanda (eólicas), comumente descentralizadas e rarefeitas (solar).

Em suma, a flexibilidade temporal (reservatórios e turbinas hidráulicas) e espacial (sistema de
transmissão) que o sistema elétrico brasileiro possui coloca o país em uma posição única na transição energética, fazendo com que a transição brasileira possa ser menos custosa e tensa do que no resto do mundo; justamente em função de possuir esses ativos portadores de flexibilidade.

Praticamente metade desses ativos hoje está na mão do Estado. A Eletrobrás controla mais
da metade dos reservatórios, 45% das hidrelétricas e 47% da transmissão.

Portanto, o Estado brasileiro detém hoje recursos estratégicos para controlar os custos da transição energética brasileira, viabilizando uma entrada massiva de renováveis mediante a utilização desse conjunto de ativos de flexibilidade, sob uma perspectiva coletiva de redução de custos e garantia de acesso amplo à energia para a economia e para a sociedade.

A privatização da Eletrobras implica a transferência desse poder de flexibilidade integralmente para o setor privado. A partir daí, o controle da transição brasileira passa a seguir uma lógica privada. Desse modo, ao invés de usar as rendas associadas ao controle dessa flexibilidade (que vão além da simples renda hidráulica) para reduzir os custos econômicos e sociais da transição, essas rendas serão usadas para ampliar os ganhos individuais de um número restrito de agentes que irão controlar, de fato, esses ativos.

Cabe destacar que a privatização da Eletrobras deve ser vista em conjunto com a chamada modernização do setor elétrico brasileiro. Em adiantado estágio de tramitação no Congresso Nacional, a dita modernização muda radicalmente o modelo institucional tradicional do setor. Retomando a agenda liberal dos anos 1990, a chamada transição para o mercado propõe a liberalização do mercado elétrico, mediante a retirada das restrições à livre atuação da iniciativa privada existentes hoje nesse mercado carregado de especificidades. Essas restrições foram implementadas historicamente a partir do reconhecimento, de um lado, das especificidades do produto energia elétrica e do seu mercado, e, de outro, do caráter essencial dessa energia para o desenvolvimento econômico e para o conforto e o bem-estar da sociedade.

Só a complexidade permite o crescimento económico

Sob a atrativa ideia da liberdade de escolha do consumidor, a chamada portabilidade, esconde-se o exercício de um forte poder de mercado pelos detentores dos ativos elétricos em um contexto regulatório muito mais frouxo do que aquele empregado tradicionalmente no setor. Desse modo, consuma-se o processo, iniciado nos anos 1990, de liberalização do espaço econômico representado pelo setor elétrico para um processo de forte acumulação de capital sem os “retrógrados” limites impostos a essa acumulação a partir de uma visão que historicamente privilegiou o acesso democrático à energia elétrica. Acesso este visto desde o final do século XIX como um sinônimo de modernidade e avanço do processo civilizatório. Portanto, o moderno no setor elétrico sempre foi o acesso à energia, e não a escolha do fornecedor dessa energia.

Nesse contexto, deve-se ter claro que a valorização dos ativos da Eletrobras privatizada se dará em um mercado liberalizado, no qual a apropriação privada das rendas da flexibilidade enfrentará restrições regulatórias muito menores do que as que enfrentaria em um mercado elétrico tradicional. Inclusive a possibilidade de gerir individualmente o risco hidrológico, que, sob a promessa do exercício da autonomia dos agentes, acoberta a gestão individual e privada dos reservatórios, que rompe com a histórica otimização centralizada do uso dos reservatórios, criada para auferir economias de escala, escopo e diversidade hidrológica sistêmicos, que fundou toda a construção do setor elétrico brasileiro.

É justamente sobre a gestão privada e individual desses reservatórios privatizados que repousam as gigantescas possibilidades de ganhos para os agentes econômicos que apoiam a dobradinha privatização/modernização.

Não é gratuita, portanto, a forte presença de bancos, corretoras e comercializadoras de energia à frente do lobby da privatização/modernização. Esses seriam aqueles agentes que não só detêm a hegemonia da formulação e implementação da agenda setorial hoje no país, como também são aqueles que mais têm a ganhar com a gourmetização da energia elétrica e a gentrificação do mercado elétrico no país.

Nesse sentido, a privatização da Eletrobras, somada à liberalização do mercado elétrico, implode qualquer possibilidade de usar a transição energética como alavanca para a recuperação econômica e social do país, transferindo uma gigantesca parte da renda associada à flexibilidade dos ativos da empresa para as mãos privadas. Flexibilidade essa que poderia ser usada para gerar crescimento, renda, emprego e bem-estar para a sociedade brasileira.

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