Uma história mais antiga que o tempo

Crônicas - Por Vai Ali

17/03/2017

Alguns locais estão querendo banir o filme A Bela e a Fera pelo suposto “conteúdo homoafetivo” da refilmagem. Assim caminha a humanidade: pra trás.

Ps: Irei graciosamente relevar que existe uma música sertaneja com o tema pela babaquice que é a letra.

Ps2: clique aqui antes de ler

Em 1983, Chico Buarque e Edu Lobo compuseram a trilha para a peça O Grande Circo Místico. Além de renomadíssimas músicas como Beatriz, por exemplo, uma outra quase passa despercebida – só não passou muito despercebida pra Cássia Eller e pro Nando Reis depois de um tempo. A música se chama A Bela e a Fera. Na olimpianíssima voz de Tim Maia e com um arranjo pesado que se diferencia do resto da peça, a letra trata do amor do Homem-Fera de um circo pela bela garota filha dos donos. Ele “dava nó em paralela”, tinha “tórax de Superman” mas “coração de poeta”; na tentativa da lábia, dizia que sua beleza sobre o corpo dele seria mais uma centelha num graveto que iniciaria uma queimada por canaviais; o “sangue impresso na gazeta” tem mais inspiração; e, por fim, a súplica: “recebe o teu poeta, oh bela / Abre o teu coração”.

Abre o teu coração ou eu arrombo a janela”.

Não me lembro de ouvir sequer um comentário sobre cultura do estupro nessa letra. É de uma peça de ficção, é uma letra sensível e forte. É do Chico. Chico “sabe das coisas”, ele “tudo pode”. Mas é ficção. Uma ficção que, hoje em dia, daria muito pano pra manga nas redes sociais. Eu adoro a música e me eximo de críticas. Mas o link dela com o tema da coluna de hoje é indispensável.

O filme do momento não é mais Logan (há duas semanas da estreia, já virou notícia do passado nessa era hipervolcista), e sim o remake de A Bela e a Fera. Ainda nem chegou aos cinemas, e o mundo já está atônito. Rússia, Oriente Médio, Alabama e outros estados convictos de que a base da sociedade é a cristandade do matrimônio heterossexual – ainda que sob tapas, esquartejamentos, submissões e traições – já estão se empenhando para que o filme não chegue às telas pois, segundo boatos, um dos personagens seria gay. Aquele gordinho baixinho capacho do vilão Gastão, lembram-se dele?

Segundo essa galera, este personagem vai estragar toda a história quase milenar do amor entre uma bela garota e um animal selvagem. Quer dizer, um príncipe (desculpa, sociedade… esqueci que esta metáfora é bonitinha e vocês aceitam de boa – e eles não se importam que uma música clássica foi deixada de fora para dar lugar a 3 originais). Segundo uma corrente contemporânea à nossa, a letra da música está errada.

Primeiro, vamos lembrar da letra em inglês? Aqui, traduzo alguns trechos pois a música em português, pra dar conta da melodia, mudou tudo (mas também chegaremos lá).

Conto mais antigo que o tempo / Verdadeiro como pode ser / Quase nem amigos eram até que algueem cede inesperadamente.
Os dois um pouco com medo, nenhum dos dois preparados.

Canção mais antiga que a própria rima / Agridoce e estranha / Encontrando (o amor) você pode mudar / aprendendo que estava erradx.

Conto mais velho que o tempo, canção mais antiga que a rima.

A bela e a Fera.

Acho que não precisa de mais nenhuma frase pra mostrar o quão linda é esta letra e fala de amor – simplesmente AMOR. Agora, vamos à tradução do próprio desenho:

Sentimentos são fáceis de mudar mesmo entre quem não vê que alguém pode ser seu par / Basta um olhar que o outro não espera para assustar e até perturbar.

Sentimento assim, sempre é uma surpresa / Quando ele vem nada o detém, é uma chama acesa / Sentimentos vem para nos trazer novas sensações, doces emoções / E um novo prazer.

Isso também fala sobre AMOR e não vi nenhum “incentivo malígno para as criancinhas virarem gays”. Vi apenas que, independente de sexo, raça, gênero, religião ou time da futebol americano, duas pessoas podem, inesperadamente, descobrir um amor que ultrapasse as invisíveis barreiras que a sociedade erigiu pra esconder o seu próprio prazer.

Mas ok, vou seguir minha reflexão.

Parece que é mais aceitável Chico por Chico falar de estupro que um personagem secundário de um conto de fadas adaptado para o mundo contemporâneo ser homossexual. Vejam bem: quantos contos estão sendo adaptados? As princesas mudaram, o mundo mudou; elas estão mais corajosas, não querem o amor forçado heterossexual, preferem amar a mãe ou a irmã a ficar com um príncipe qualquer.

Mas alguns países preferem banir o filme por causa de um personagem secundário ser homossexual.

Ainda bem!

Ainda bem que eles estão banindo e mostrando que, não importa o quanto nós tentamos, o quanto lutamos e o quanto brigamos pelo nosso prazer, pela nossa felicidade que, em momento algum, fere narcisica e imaginariamente o corpo de outra pessoa ou a cultura e a civilização de uma forma relevante. Nós queremos beijar apenas quem nós queremos, independente se é homemmulherpretobrancoamareloafricanojaponesacroataouacreana.

Ainda bem que estão mostrando, de verdade, que toda a utopia que construímos achando que o mundo está mais tolerante na verdade é uma falácia, e que não importa o que queremos, alguém vai sempre querer banir um conto de fadas. Tavez por eles mesmos nunca terem ouvido esta música, nunca terem conhecido como os sentimentos podem assustar e mudar a nossa vida.

Toda nossa utópica conquista de direitos iguais, morbidamente, jaz na própria utopia e nos carimbos da hipocrisia de não apenas uma velha-guarda que nunca saiu do guarda roupas, mas de uma juventude que já cheira a naftalina e ignorância. A partir do momento que um beijo, mãos dadas na rua com pessoas do mesmo sexo, um abraço entre amigos ou uma garota de cabelos raspados incomodar a civilização a ponto de colocá-la em regresso ao invés do progresso, estaremos fadados ao fracasso.

Ops, quer dizer… acho que esse navio já zarpou em direção ao iceberg da repressão. Só espero que os marujos avisem o capitão a tempo, pois ele está bem pertindo. Quase dá pra sentir o cheiro do gelo.

Talvez faltou pra eles a mãe-Bule cantar isso pro filho-Xícara antes de dormir, que o importante não é ameaçar arrombar a janela, mesmo que a janela seja do Chico, e sim que basta alguém ceder inesperadamente a um sorriso, pequeno e sincero, e ninguém estará preparado para o prazer que vier.

Seja com o que melhor lhe convir.

Mas esta canção, a da intolerância, é mais antiga que o próprio tempo.

E não tem rima nenhuma.

Ps3: espero que esta coluna extrapole a leitura apenas da intolerância sexual, pois há infinitas formas de intolerância que são cometidas diariamente, sentidas, em silêncio, por aqueles que as sofre. Pensem nas micro-intolerâncias, você mesmo as possui em excesso ;). Mas espero que mude.

Compartilhe:

Tags: