A entrada do Salvaterra

Crônicas - Por Vai Ali

03/08/2017

Muitas vezes cito o texto “Sobre a transitoriedade” de Freud como um ponto de partida para reflexões. Basta procurar na internet esta pérola de menos de três páginas para nos colocar a pensar sobre aquilo que Pessoa também falava, que o valor das coisas não reside na sua duração, e sim na sua intensidade – e na capacidade de ser finita. Acabar é dar continuidade a uma fluidez eterna nessa efêmera vivência que estamos.

É no valor da transitoriedade das coisas que reside nossa nostalgia. Ela nos assegura de que, pelo menos, vivemos. Nem que uma vez, mas vivemos. Em outro texto, “Mal-estar na civilização”, Freud também diz algo sobre a felicidade efêmera. Diz o psicanalista que a felicidade só funciona se pontual. Caso contrário, não aproveitaríamos os picos. Imagina viver o tempo inteiro “lá em cima”? Depois de um tempo seu organismo acostumaria com aquilo. Pense na drogadição: cada vez mais; mortiferamente mais atrás de um prazer que jamais será alcançado novamente como a primeira vez.

Por isso às vezes ficamos tão melancólicos nos últimos dias: o último dia da turnê, da viagem, da aula, do trabalho, do rolê, do namoro…. O último dia vem pra reiterar que tudo, até a vida, acaba. Mas também reitera o seu oposto: que você, pelo menos, viveu. A dialética do finito/eterno se acentua.

O que é finito nos remete sempre à nossa vida que um dia chegará ao inevitável fim. E isso é por demais difícil para darmos conta. Em virtude dessa mortalidade, criamos paliativos que nos tragam, ao menos, uma tentativa de evitar com que isso ocorra mais cedo que o esperado dentro da condição humana. Álcool, filmes, músicas, cercas eletrificadas, seguros, drogas, hobbies, cinto de segurança. Tudo que traga esses picos de felicidade ou evite os picos de mortalidade física.

Ao mesmo tempo em que sofremos pelo fim, a força do já vivi se exalta em uma tentativa do corpo de equilibrar as emoções e não nos deixar cair na sofrência ­– que, aliás, só fui descobrir que aquela dancinha tosca onde as pessoas colocam a mão fechada na testa se chamava isso. Por que, internet? Por quê?

O já vivi nos traz uma ilusória satisfação de que fizemos parte de algo prazeroso, ao passo que também nos massacra por isto ter ficado num distante passado – de duas horas ou duas décadas. Carregamos em nós todas as intensidades já sentidas ao longo de toda a vida. Pense em como aquele distante beijo, aquele longínquo abraço ou aquela vergonha que você passou ao cair da escada na frente do crush continua a te trazer aquele calor da emoção à tona, a ponto de corar suas bochechas e esquentar qualquer frio juizforano.

Talvez por isso, em meio à toda essa m***a de época e suposta “humanidade” em que vivemos atualmente conseguimos retirar a poesia aparentemente inóspita da nossa fragilidade. Dentre tantos males, tantos bons-ruins-bons momentos, como extrair felicidade disso tudo? Cada um dá o seu jeito, o seu rolê; cada um busca encontrar, que não a impossível felicidade eterna, mas um cessar deste peso no coração e do nó cada vez mais apertado na boca do estômago.

Ah, esta velha angústia de há séculos de Pessoa.

Somos obrigados, contra tudo que nossa psiquê busca, a aprender a largar e aceitar o final da jornada, o fim da viagem, a volta pra casa – e, no caso de nós, os xisdeforeans, a deprimente entrada do Salvaterra, marco máximo do lá e de volta outra vez para nosso shirezinho chamado Pequenópolis.

Mas o fim é começo é o fim é o começo é o meio que vai fazer o fim chegar pro começo de novo. A jornada é cíclica e a linguagem não dá conta dela ainda. Só nossa já embaralhada existência.

Para isso existem as fotografias na parede.

Mas como dói!

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Tiago Sarmento é um ávido apreciador de revestrastróis e flavonóides, lúpulo e fermentados que já atingiram a maioridade. Além disso, é músico e faz uns boho folks aqui e ali autorais com umas releituras que vão desde Almir Sater a Black Sabbath. Quando sobra tempo entre o vinho e a música, dedica-se ao seu doutorado em Teoria Psicanalítica. 

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