A paradoxal liberdade da Não-Virtude

Crônicas - Por Vai Ali

08/02/2017

A muitos anos eu li “O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” de André Comte-Sponville.

Confesso que fiquei embevecido com a prodigalidade com que este filósofo discorre sobre as virtudes e a profundidade que as suas reflexões nos conduzem. Em seu preâmbulo já se depara com um parágrafo que cito em parte e que é um ótimo introito:

“Se a virtude pode ser ensinada, como creio, é mais pelo exemplo do que pelos livros. /..Os filósofos são alunos (só os sábios são mestres), e alunos precisam de livros; / Assim como Spinoza, não creio haver utilidade em denunciar os vícios, o mal, o pecado. Para que sempre acusar, sempre denunciar? É a moral dos tristes, e uma triste moral. Quanto ao bem, ele só existe na pluralidade irredutível das boas ações, que excedem todos os livros, e das boas disposições, também elas plurais, /”

E por falar em virtudes, as boas virtudes e por falar em moral e a pluralidade das boas ações é que, refletindo, no Brasil de hoje, diante de nossas disposições quanto ao outro, às nossas tolerâncias e o contrário, nossas intolerâncias, às nossas pseudo-virtudes e ao contrário, nossas frequentes faltas, inclusas as de caráter, que nos remete ao fundo moral enunciado  acima, é que discorrendo sobre as virtude que Sponville fala eu me sinto LIVRE. Sim, completamente livre para não ser virtuoso. Porque esta posição?

Vejamos quais as virtudes (algumas, eu direi aqui) em que se debruça nosso filósofo:

A Polidez

“Um canalha polido não poderia ser pior que outro?”

Sim e o mais das vezes os canalhas, os que mentem até mesmo chorando por eventuais “injustiças” contra si, se debruçam na acusação contra si e são perfeitamente educados e mostram copiosa indignação. Mas são sabidos canalhas. Alguns são condenados e prosseguem na atitude de se indignar, embora alguns estejam presos. Mas sempre guardam a fingida altivez da polidez ou educação esmerada.

A fidelidade

Quem é fiel e ao quê? O mais das vezes homens e mulheres são fieis muito perfeitamente aos seus vícios e aos seus vícios de caráter. Não são fiéis aos votos neles depositados e nunca à confiança.

A prudência

Tenho vivido em meus 60 anos o mais das vezes a completa inconsequência humana, desmandos governamentais, guerras que são verdadeiros genocídios, e que se perpetuam, e perpetuam a fome, a loucura, o sentimento de vingança e o extermínio da razão, a tal ponto que ultimamente temos gasto no mundo um orçamento de trilhões de dólares em armamentos em guerras, contra Quem? Algum outro planeta? Onde está a prudência nestes homens que constroem abrigos anti-nucleares, sabedores que uma explosão atômica de qualquer  das partes em litígio, exporá toda a humanidade ao desastre e à perda da vida e de sua qualidade para os sobreviventes? Que caminharemos para o extermínio da espécie humana, e não apenas a espécie humana?

A temperança

Ao contrário, temos visto a exasperação ao menor movimento de contrariedade do outro. Qualquer que aparecer contra a ideia hegemônica, gozará de um bulling social, poderá ser espancado e ao se determinar quem está certo e quem está errado, pretende-se erradicar aquele que por algum motivo, correto ou não, é considerado errado. Não há tempero, é sal grosso.

A coragem

É o que mais tem faltado àqueles que sabem que sem luta não há sucesso. Nosso povo tem sido cordeiro imolado todos os dias na passividade e ignorância de nossos direitos. Caminhamos como se tivéssemos na terra de outros.

A justiça

Definitivamente, onde ela está? Se você quer e acha que deve ser justo, provavelmente vão rir de você. Vão dizer que você vive em outro planeta e que é chato. É lunático. Justiça? Ora a Justiça, ela é para os que tem privilégios , ora…

A gratidão

Uma venerável virtude. Mas, percebe-se que aqueles que mais contribuíram e contribuem para a melhoria do todo serão esquecidos. Aqui só faz sucesso o que transforma suas ações em rituais midiáticos. Que faz caras e bocas, que não trabalha a não ser para si e para seu engrandecimento e o reconhecimento vem em cima do que a mídia propaga como figurino básico. Na maioria são falastrões. Os abnegados que carregam o mundo nas costas não têm sequer de si mesmo uma ação que os exiba como modelos a ser seguido e reconhecido. Ninguém reverbera suas obras e se for político será combatido.

A tolerância

Não se tolera a torcida adversária; não se tolera o pensamento diferente; não se tolera a diversidade cultural, de gênero, de raça, de cor e de religião. Isto até pode ser um reflexo de nosso mundo, onde as qualidades da tolerância estão cada vez mais raras. Povos quase dizimados por intolerantes,  são agora os intolerantes com outros povos. Pratica-se o genocídio a torto e a direito, e a morte de inocentes em guerras de invasão ou de submissão ao status geopolítico dominante, é chamado pelo lado mais forte, o que detém a “justiça” a seu lado, ou mando ou poder, de “efeito colateral da guerra”. Não importa se são crianças, mulheres indefesas, povoações sem armas ou lado na guerra, ou mesmo idosos. 

A boa-fé

A boa fé é moral e, como diz-nos Sponville, “como virtude, é o amor ou o respeito à verdade, e a única fé que vale”.  Muito bem. O maior exemplo da má-fé é o marketing pessoal dos políticos;  as mensagens subliminares em propagandas de produtos nocivos; a pretensão de enganar o consumidor  fazendo-o crer que aquele produto tem as qualidades que menciona e que não agride nada nem ninguém, para quando se aproxima em seu processo de produção, descobre-se que o produto viola regras até mesmo de bom senso. Muitos produtos  sequer alimentam. São perfumarias.

O Amor

Ora o Amor. Para haver amor, é preciso respeito. As pessoas não amam muito longe de seus parentes no circuito de sua intimidade. Muito poucos amam seus amigos e raros amam a humanidade. Muitos são felizes com o mundo que sacrifica animais de forma hedionda, crianças no nascedouro, por achar que é uma outra humanidade. O homem só teme o mal ao semelhante, porque como ele se tem como vulnerável. Eventualmente as pessoas são solidárias em alguma doença grave, hecatombes e catástrofes naturais. Jamais as guerras de extermínio figuram como preocupação do homem moderno. Muitos se dizem cristãos, mas parecem não ter lido a palavra de seu Mestre. Amor, que Amor? Você só lê sobre isto em romances, ouve nas falas dos religiosos, ou assiste em filmezinhos Hollywodianos, mas ninguém pratica ao próximo.

Portanto, eu deixei outras virtudes que o livro menciona para uma outra análise e comentário. Talvez. Aqui eu já me sinto livre de ser um cidadão de bem. Posso ser canalha, torcer para aquilo que será melhor para mim, não apenas no futebol, mas também na política, ou na minha rua, para a minha cidade ou para a minha família. Farinha pouca, meu pirão primeiro, não é assim?

Livre. Eis o que nos torna demasiado irresponsáveis, quando no limite de nossas vidas e de outros não agimos como uma sociedade ou de maneira civilizada. Então, a liberdade que eu estou falando é aquela a que todos têm se imposto, liberdade de cuidar apenas de seus interesses, e que tudo o mais se exploda.

Ser livre assim, não é ser virtuoso. Mas tem gente que é feliz com o insucesso de outros e até com suas misérias, e querem continuar a ser livres desta forma.

Por isto que aqui escrevo este paradoxo, afinal pegar um livro como o de Sponville e dizer que liberdade é não ser virtuoso é muita perda de tempo, é falta até de decoro.

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