Se nada certo…

Crônicas - Por Vai Ali

22/06/2017

Eram 4 da manhã mais ou menos quando ouvi o barulho vindo da cozinha. Cagão que sou, logo dei um pulo da cama, peguei meu taco de baseball e saí do quarto. O barulho aumentava, e a luz lá de baixo estava acesa. Desci as escadas com cautela pro ladrão não ouvir meus passos. À meia luz, me pareceu uma mulher, devido aos seus longos cabelos cacheados e roupas largas; assustei, estaria eu vendo assombração? E estava… quando o invasor virou, nós dois deixamos cair o que segurávamos na mão.

O invasor me era estranhamente familiar, intimamente desconhecido. Depois de uns segundos de angústia, ambos se olhando sem entender nada, chegamos a uma conclusão: morremos. Mas não, algum evento cósmico me colocara de frente para mim mesmo aos 17 anos. Para ele, o estranho fora de seu tempo era eu. Foi dificílimo se reconciliar com os paradoxos temporais explicados pelo Doutor Brown.

Ele havia chegado em casa normalmente pós-balada e foi logo pegando um rango na cozinha. Como ele era eu, eu sabia que ele-eu estava bêbado. Eu mesmo, confesso, tinha exagerado numas taças a mais de um belíssimo Pinot 2010 da borgonha; ele, se entupido de Crystal a 1 real na cantina do Opção.

Sentamos no balcão e começamos a conversar: ele, arrogante, sincero e impulsivo, com uma paixão descabelada pela vida; eu, interessado, obtuso e quieto, inquietamente recluso dentro do meu mundo. Conversamos sobre – o que mais? – garotas, futebol, álcool, etc. Mostrei a ele meu último texto sobre essa babaquice do Marista de “se nada der certo …” e ele refletiu.

Daí começou:

– Se nada der certo… sei lá, se nada der certo, eu começo a tocar em barzinho em troca de rango e birita.
– Cara, nem todos os bares pagam bem, alguns são de amigos que estão começando… eu toco muito por isso.
– Ah, mas eles vão te explorar!? De jeito nenhum, achei que você fosse mais esperto.
– Você ainda vai descobrir que o tesão de tocar é outro…
– Mas eu tenho certeza que vou ganhar dinheiro vendendo disco!
– Você já lançou 3 e, juntando todos, não vendeu nem 20. 
– Beleza. Mas se nada der certo profissionalmente na música então, sei lá, eu viro redator publicitário.
– Você não conseguiu se manter no mercado…
– Tá, eu faço um mestrado qualquer depois…
– Cara, você fez.
– E tô sem emprego ainda? Caramba…
– As coisas mudaram, bicho.
– Beleza, faço um doutorado e vou dar aula na Federal. 
– Você fez e mesmo assim não conseguiu dar nem curso de extensão em faculdade particular, cara.
– Tá, mas no final das contas, dinheiro não importa, não é mesmo? O amor é o que vale. Eu abandonaria tudo por amor. Mas, se NADA DER CERTO, eu moro sozinho de boas.
– Cara, você mora sozinho.
– Nessa casa enorme?
– Sim.
– Mas e o casamento, e o amor? Eu não vou encontrar?
– Vai casar e vai descasar na mesma velocidade. Sobre o amor, bem, as coisas não são bem assim…
– Então eu encontrei um amor?
– Um não, alguns.
– Alguns? É…. Eu tenho essa tendência a amar uma pessoa diferente por semana né? O que vale é a intensidade do momento, não sua duração, você está certo!
– Bom, pelo menos de intensidade você não pode reclamar. Continua sendo intenso e imbecil do mesmo jeito. Você não aprendeu nada! Deixou pra trás 2 ou 20 que poderiam ter mudado a sua vida, mas que apareceram na hora errada. 
– Mas eu não sou bonitão, tô fo***o então né?
– Eu também não sou, mas olha, TEMOS UM BIGODE MANEIRO!
– É…. O bigode tá maneirasso mesmo! Mas as garotas não curtem muito…
– Vão curtir. Isso vai virar moda. E cabelo moicano também. E depois coque. E depois meia amarela.
– Putz… tô te imaginando aqui usando roupa de mulher daqui a pouco kkkkkk.
– Então…. Você compra mais na sessão feminina das lojas de departamento que nas masculinas.
– Tá de sacanagem… as roupas ficaram mais unissex?
– Errr….. uma coisa ou outra. Mas relaxa: te garanto que você tocando de maquiagem aí é muito mais bizarro…
– Poxa, deixamos de ser posers?
– GRAÇAS A DEUS!
– Mas cara, sobre o lance do amor lá… e o “abandonar tudo”? Por que deixou as minas saírem da sua vida. 
– Cara, a hora era errada.
– Em todas as vezes?
– Sim!
– Seu relógio não tá atrasado não?
– E o seu não tá adiantado não?

Silêncio. Tivemos que tomar uma dose de um bourbon se quiséssemos continuar.

– Tá, mas se nada der certo eu viro colecionador compulsivo, tipo aqueles velhos que colecionam carros de corrida?

Olhei em volta e fiquei feliz por ele não ter visto, no breu da sala, minha coleção de carrinhos do Batman, de Cavaleiros do Zodíaco e de filmes de super-heróis.

– É..tsc tsc… ridículo isso. 
– Então deixa eu recapitular: com 32 anos eu não estarei casado, não terei encontrado o amor da minha vida, não serei músico profissional, serei colecionador obsessivo, não terei emprego como redator, nem como professor sendo que tenho doutorado? Pelo menos careca ainda não fiquei… Tá, mas pelo menos o filho aos 27 eu terei né??
– Ih rapaz… você agendou uma vasectomia pra daqui 3 meses.

Isso foi demais pra ele.

– Tá, mas se nada der certo, eu adoto um cachor…… nem cachorro você tem, né?
– Não…
– Mas eu tenho amigo pra caralho, não vou ficar tão sozinho assim.
– Então…. Vai. Vai ficar sozinho sim, nenhum deles vai vir até a nossa casa. Todo mundo tá ocupado sempre.
– Tá… beleza…. Então se nada der certo mesmo, e pelo que tô vendo vai ser assim, eu saio por aí viajando.
– Cara, você tem medo de avião. 
– De carro?
– Trauma de blitz.
– De busão?
– Peguiça e dor nas costas.
– Tá, eu viro cafetão, ca****o!!
– Trauma de Blitz. 
– Tá, vai fazer aquela piada então de “de positivo só tenho HIV”?

Fiz silêncio e ele ficou branco, pálido, entornou sua bebida.

– Relaxa, ô cu**o, tô te zoando.
– Ah, que bom…. Então eu casei e tenho filho né?
– Não, não. Te zoei do HIV, o resto é tudo verdade.
– Cara, então me fala: O QUE DEU CERTO NA MINHA VIDA?
– Brother… você fez duas faculdades, uma especialização, um mestrado, um doutorado; formação em psicanálise…
– PSICANÁLISE? PORRA, tá zoando!! Você não se matou não?
– Cara, seu doutorado também foi em psicanálise…
– P**A QUE ME P***U…. Vai dizer que fizemos faculdade de psicologia também??
– Não, não… não é pré-requisito pra ser psicanalista. 
– Ah, que bom, pelo menos né…
– Mas você vai fazer por causa de concurso em uns anos.
– VAI SE FO**R. Desisto de você, vou me matar antes dos 27 então, você tá fo***o.
– Deixa de ser juvenil, ô mané…. Você fez isso tudo, estudou pra cacete, fala de psicanálise como poucos; mudou a cabeça de um ou dois professores com suas teorias; conheceu gente maneira pra cacete por causa desses cursos todos, pessoas que realmente te levam a sério e estão interessados no seu conhecimento; se afastou de muita gente por serem todos rasos e pequenos pra ficarem do seu lado, só deixou quem realmente importa; já gravou 3 discos de músicas próprias, já abriu show pro Almir Sater, já tocou na televisão ao vivo em horário nobre; conheceu o Sebastian Bach; vai ter ido em 4 shows do Aerosmith, Paul McCartney, Roger Waters, Deep Purple, Peter Frampton e em 2 do Whitesnake… Seus pais ainda estarão vivos, bem de saúde e você terá uma porrada de tatuagem…
– Que massa!
– Cozinha bem e cozinha saudável; sabe diferenciar um Pinot de um Cabernet. E esses dois juntos, te garanto que não vão te deixar sem conhecer pessoas bacanas. Você assina o PFC; tá querendo abrir uma hamburgueria em outra cidade; não morreu de cirrose depois de tomar essas merdas que você toma e comer essas bostas que você come; apesar disso tudo, ainda tem amigos das antigas e histórias pra contar. Infelizmente, quando algum morrer antes da hora, você vai chorar mas vai se lembrar que, brother, NADA DEU ERRADO. Tudo, TUDO deu certo exatamente na medida. Sabe por que? Porque tudo vale a pena se…… completa aí, se……
– A alma não é pequena. 
– Não, se a cuca não esquenta!
– Eu virei otimista então?
– Não.
– Ué, mas isso tudo não faz sentido…
– Você sabe apreciar as coisas em seus momentos, só isso. Seu relógio entrou no fuso correto.
– Sei não hein… acho melhor eu voltar pro meu tempo, você volta pro seu e a gente vê no que vai dar.
– Relaxa cara… tudo vai dar certo. 
– Tá, uhum… tá bom. Vem cá, me fala alguma paixão pelo menos que eu tenho, só pra eu já começar a correr atrás então.
– Freud.
– VAI TOMAR NO C*!

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