Para gerar variantes, vírus requer tempo e oportunidade

Fala, Zé! - Por José Roberto Abramo

05/04/2021

Por Natalia Pasternak * (artigo reproduzido com anuência do Instituto Questão de Ciência e da autora)

variantes

O surgimento de variantes do novo coronavírus trouxe, de carona, dúvidas, especulações e até teorias de conspiração. Mutações e variantes fazem parte da vida normal de todo microrganismo. Qualquer pessoa que tenha trabalhado em um laboratório de microbiologia já teve a oportunidade de ver a evolução acontecendo em tempo real. Variantes deste vírus, portanto, não são nenhuma surpresa.

 

Cada vez que o vírus se replica, ele pode sofrer mutações, que nada mais são do que erros de leitura no código genético. Esse código traz as instruções para produzir cópias do vírus. Erros de leitura significam cópias imperfeitas. Essas imperfeições podem causar o surgimento de “variantes”.

A imensa maioria das mutações será silenciosa, ou seja, não fará nenhuma diferença para o vírus. Pode permanecer ali ou sumir, de acordo com o mais puro acaso. Outro tanto será deletério, trazendo desvantagem para o vírus: os portadores dessas, provavelmente, logo desaparecerão. Uma pequena parcela, no entanto, pode conferir alguma vantagem para o vírus e ser selecionada, e tornar-se prevalente na população.

Algumas condições facilitam o surgimento de mutações vantajosas, que podem conferir aptidão viral:

Aumento da circulação do vírus: mutações vantajosas aparecem ao acaso. Portanto, quanto mais o vírus se replica, mais mutações ele sofre, e assim, maior a chance de uma delas conferir alguma característica vantajosa para o vírus. Pode ser uma maior transmissibilidade, maior afinidade ao receptor celular, a habilidade de escapar do sistema imune, qualquer coisa que faça dele um vírus mais bem-sucedido em nos infectar. O SARS-CoV-2, causador da COVID-19, era um vírus muito bem adaptado a morcegos. Se pula para outro animal, certamente é porque adquiriu uma característica que lhe permite infectar as células do novo hospedeiro. Mas isso não quer dizer que esta infecção é ótima. Sempre tem espaço para mudar e aprimorar. Isso é esperado para qualquer vírus, e muito observado em laboratório. Quem se adapta melhor, graças a uma mutação que o deixa mais transmissível, por exemplo, ganha a competição das outras linhagens, e logo se torna prevalente.

A circulação das pessoas garante a circulação do vírus e a criação de variantes por pressão seletiva

Pressão seletiva: se o vírus se multiplica num local com obstáculos, mutações que lhe permitam superar essas barreiras vão ajudá-lo, certo? É isso que acontece quando colocamos anticorpos na jogada, por exemplo. Só que se tiver obstáculos demais, o vírus desaparece: mutações acontecem ao acaso, e ao longo do tempo. Se a oposição que ele enfrenta é firme e rápida, ele pode não ter a sorte necessária para a mutação certa aparecer a tempo de salvá-lo. Mas se os obstáculos forem poucos, pode ser que ele ganhe tempo suficiente e surja uma mutação vencedora. Uma das maneiras de selecionar bactérias resistentes a antibióticos em laboratório é cultivá-las em subdoses de antibióticos. Quando os vírus são cultivados em um ambiente com anticorpos por muito tempo, é natural que surjam linhagens que escapem destes anticorpos. E já que os vírus capazes de escapar dos anticorpos levam vantagem sobre os que não escapam, esta linhagem se torna prevalente.

Já deu para perceber que os principais fatores são replicação – e isso quer dizer, circulação do vírus – e tempo. O vírus circulou durante um ano em bilhões de pessoas. Era natural e esperado que surgissem variantes mais bem adaptadas. Novas variantes, aliás, surgem todos os dias, mas a maioria nem percebemos. Só quando se tornam prevalentes é que chamam a nossa atenção. Tornar-se prevalente também pode ter dois motivos:

Aptidão viral: o vírus sofreu mutação que o deixou mais transmissível, ou fez com que escapasse do sistema imune – e, portanto, de vacinas também –, ou aumentou sua afinidade ao receptor celular. Essas aptidões deram vantagens que fizeram com que o vírus ganhasse a competição contra outras linhagens anteriores e se tornasse prevalente.

Aptidão epidemiológica: o vírus estava no lugar certo na hora certa. Imagine duas variantes: a variante da Maria e a variante do João. A Maria ficou em casa, usou máscara e não frequentou aglomerações: os vírus que estavam nela não conseguiram saltar para ninguém. O João foi à igreja, não usou máscara, cantou, e abraçou os amigos. A variante do João se tornou prevalente. A variante do João não tinha nenhuma vantagem adaptativa sobre a variante da Maria, só teve a sorte de estar a bordo de um hospedeiro mais burro.

[PFF2 é a certificação brasileira e a N95, a norte-americana. Ambas têm um poder de filtragem superior aos das máscaras cirúrgicas e de pano, e são recomendadas para barrar vírus disseminados por aerosois (góticulas que as pessoas expelem em mespirros, tosse ou falando alto ou cantando)]

Variantes de preocupação

Dispondo desses conceitos, podemos entender – sem pânico – o que são as variantes de preocupação, ou VOCs, na sigla em inglês.

Essas variantes surgiram por causa do descontrole da pandemia. Vimos que, para surgirem variantes que tornem o vírus mais apto, é preciso muita replicação viral, e muito tempo, para que o acaso produza mutações vantajosas para o microrganismo. Essas condições de tempo e oportunidade foram dadas pela incapacidade humana de conter a disseminação inicial do vírus. As variantes mais perigosas são resultado da pandemia, não sua causa.

[DESCONTROLE DA PANDEMIA E VARIANTES DE CORONAVÍRUS NO BRASIL AMEAÇAM O MUNDO]

Uma vez que um mutante mais transmissível se torna prevalente, vai fazer mais estrago do que o vírus original. O que estava ruim fica pior. Mas se tivéssemos feito a lição de casa, usando máscaras, evitando aglomerações e cumprido o distanciamento, seria muito mais difícil surgirem variantes e, caso surgissem, que se propagassem. Variantes não devem ser usadas como desculpas por governantes para se eximir da responsabilidade de conter a pandemia.

No momento, temos três principais VOCs: a do Reino Unido (B117), da África do Sul (B1351) e a do Brasil (P1). Elas reúnem entre outras, duas mutações principais: a N501Y, e a E484K. A primeira parece conferir mais afinidade ao receptor celular: o vírus entra com mais facilidade na célula humana.

Já a mutação E484K está ligada ao escape de anticorpos. Com essa mutação, a proteína “S”, que o vírus usa para “abrir a porta” da célula, parece diferente o bastante para confundir anticorpos gerados pela infecção com linhagens anteriores ou por algumas das vacinas criadas até agora.

A linhagem inglesa apresenta só a mutação N501Y, as linhagens sul-africana e a brasileira apresentam ambas.

O fato de essas mutações aparecerem simultaneamente em diferentes locais do planeta é sinal de convergência evolutiva. Trata-se da seleção de características que trazem vantagem para o organismo, e que são relativamente fáceis de aparecer. Uma mutação que substitua um aminoácido tem bastante probabilidade de acontecer aleatoriamente. Com a alta circulação do vírus, a probabilidade é maior. Se esta substituição específica é vantajosa, não é surpresa que ela ocorra mais de uma vez, em locais distintos. Mas repare que são locais de alta circulação do vírus. Não estamos vendo variantes de preocupação na Nova Zelândia ou na Coreia do Sul.

 

E as vacinas?

Até agora, todas as vacinas testadas ainda funcionam para todas as variantes, mesmo que apresentem perda de eficácia, ou precisem de mais anticorpos neutralizantes.

Quanto aos testes de anticorpos neutralizantes, há que se ressaltar alguns fatores. Alguns testes realmente apontaram uma capacidade menor das vacinas de neutralizar as variantes. Mas testes de anticorpos são apenas um aspecto da resposta imune, e são testes in vitro, em tubo de ensaio, que não necessariamente refletem o que acontece no organismo vivo, onde a resposta imune é muito mais completa.

Os ensaios de neutralização de anticorpos medem apenas um aspecto da resposta imune, que é a interação mecânica entre o sítio de ligação do vírus e o anticorpo neutralizante. Essa interação impede o vírus de entrar na célula. Mas não é nossa única resposta imune. Anticorpos não neutralizantes convocam células de defesa, como macrófagos e monócitos, que também dão conta do vírus.

Coronavirus COVID-19 single dose small vials and multi dose in scientist hands concept. Research for new novel corona virus immunization drug.

E finalmente temos a resposta celular, de linfócitos T, que vão sinalizar para trazer mais anticorpos e trarão células citotóxicas, que eliminam as células infectadas pelo vírus. Publicações recentes mostram que as variantes não afetam em nada a resposta celular. Além disso, no organismo vivo, temos células de memória, que quando encontram o vírus, produzem mais anticorpos e resposta celular.

Para evitar que novas variantes apareçam, não existe mistério: é preciso vacinar rapidamente com as vacinas que temos, e reforçar as medidas preventivas. As variantes são resultado do nosso comportamento. O vírus agradece, e Darwin sorri (ou faz careta, ao notar que ainda não pescamos direito o que ele nos ensinou).

Mas se não tomarmos uma atitude, e rápido, o Brasil corre o risco de se tornar um celeiro de variantes, um estudo de caso a céu aberto, com o vírus explorando todas as possibilidades adaptativas a seu alcance, com todo o tempo do mundo. O resultado pode ser desastroso, não só para a saúde, mas para geopolítica, economia e relações internacionais. Se o Brasil se tornar o reino das variantes, pode também se tornar o pária do mundo.

 

 

Natalia Pasternak é microbiologista, pesquisadora associada do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, membro do Committee for Skeptical Inquiry e colunista do jornal O Globo

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