Uma Lava Jato mundial

Crônicas - Por José Roberto Abramo

09/06/2023

Acompanhe a resenha do livro de Frédéric Pierucci e Matthieu Aron, Arapuca estadunidense: uma Lava Jato Mundial, publicado pela Editorial Kotter em 2021. A obra foi traduzida do francês, Le Piège Américain, por Viviane Moreira

Ladislau Dowbor

22 de junho de 2022

Esta matéria foi publicada originalmente no Le Monde Diplomatique, Edição 191 – Junho 2023

É raro um depoimento, por parte de um executivo de uma grande corporação multinacional, no caso a Alstom, gigante francês do nuclear, de energia e transportes, detalhar como funcionam o que chamamos curiosamente de “mercados”, e que na realidade envolve guerra entre os grandes grupos, com uso aparelhado do Judiciário, com envolvimento profundo dos governos, e um conjunto de comportamentos que raramente afloram na mídia ou nas pesquisas. Somente uma pessoa de dentro, e em nível elevado de responsabilidade, poderia escrever como funciona o capitalismo realmente existente.

Estamos falando da Alstom, que segundo o autor é um grupo “que tem a maior experiência nuclear do mundo. É a número um no fornecimento de centrais elétricas completas, bem como na sua manutenção, e equipa cerca de 25% do parque mundial. A empresa também é líder mundial na produção de energia hidrelétrica” (p.164).

O livro relata, capítulo por capítulo, como a General Electric norte-americana, grupo ainda maior, conseguiu comprar a Alstom, usando para isso perseguições judiciais, prisões e, naturalmente, este cavaleiro branco da política que é a luta contra a corrupção, em nome da qual podem ser feitas as maiores barbaridades.

Controlar a energia, a tecnologia do nuclear, grandes infraestruturas que representam imensos recursos e tecnologias de ponta, é vital para a soberania de um país. Como foi que França, quinta potência econômica mundial, permitiu que esse “florão da economia nacional” fosse arrebatado pela General Electric? Imaginamos o mercado que nos ensinam nos cursos de economia, do tipo que vence quem presta o melhor serviço, e não quem tem a máquina do poder político, militar e judiciário para abocanhar os concorrentes.

Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Fotos: Antonio Cruz/Agência Brasil e Marcelo Camargo/Agência Brasil

A política se torna compreensível: “Qualquer que seja o ocupante da cadeira de presidente dos Estados Unidos, seja democrata, seja republicano, carismático ou detestável, a administração em Washington sempre atende aos interesses do mesmo grupo de industriais: Boeing, Lockheed Martin, Raytheon, Exxon Mobil, Halliburton, Northrop Grumman, General Dynamics, GE, Bechtel, United Technologies, dentre outros… Os Estados Unidos, que se arvoram em dar lições de moral a todo o planeta, são os primeiros a fechar negócios fraudulentos nos diversos países sob sua zona de influência, a começar pela Arábia Saudita e o Iraque” (p.329).

Os Estados Unidos são os primeiros e únicos a aprovar uma Lei Extraterritorial, em 1970, e expandida de 1988, que lhes permite prender uma pessoa de qualquer nacionalidade, por negócios nos mais diversos países, porque a justiça norte-americana – empurrada por uma concorrente norte-americana – decide que foram violados interesses norte-americanos (p.172, p.249, p.326). Ou processar qualquer empresa que fizer negócios com um país que os Estados Unidos decidem unilateralmente como sendo submetido a um bloqueio. Ou seja, os grupos econômicos norte-americanos dispõem de uma arma de perseguição em escala mundial, com o judiciário formalmente envolvido (o Departamento de Justiça). E com o envolvimento, graças à colaboração das grandes plataformas de mídia social, da própria Agência Nacional de Segurança (NSA), ou seja, do sistema de inteligência do governo.

O Brasil é mencionado em várias ocasiões, e não há como não fazer o paralelo entre a guerra pelo controle das tecnologias mais avançadas e dos maiores contratos internacionais, com o que foi a Lava Jato no Brasil, também desenvolvida em nome da luta contra a corrupção, com o apoio dos Estados Unidos, e terminando em quebrar grandes concorrentes da construção como a Odebrecht, e a privatização de grande parte da base energética do país, em particular a Petrobras e a Eletrobrás, sem falar de outro florão tecnológico do Brasil que é a Embraer. É guerra, e utilizar os judiciários norte-americano e brasileiro de forma escandalosa faz parte do sistema. O primeiro passo, como no caso da Alstom, é a privatização, que permite a apropriação externa por mecanismos financeiros. A gente imagina a China entregando o controle da sua base energética a corporações internacionais? Pela clareza e profundidade da exposição, uma leitura indispensável.

Ladislau Dowbor é economista e professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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