Tocando e seguindo em frente

Crônicas - Por Vai Ali

13/02/2017

Às vezes, nós tocamos por cachê; às vezes, somos tocados por quem anda devagar…

Ser músico é, às vezes, se meter em roubadas: tocamos por metade do cachê ou, se bobear, por cachê nenhum. Às vezes, recebemos elogios; outras, silêncio e indiferença; às vezes rola um palco enorme com equipamento sensacional; outras, precisamos nos satisfazer com aquela velha caixa de som no canto do armário.

No meu caso, sábado, foi um pouquinho diferente.

Quem é beneficiado pela Lei Murilo Mendes oferece alguma contra-partida. Geralmente, pro músico, são alguns shows e uma parte dos discos produzidos. E eu confesso não ter recebido com entusiasmo algum a oferta de fazer um show no CAIC Linhares num sábado de manhã. Às vezes rola um narcisismo do “só posso tocar sábado à noite para um público que corresponde ao meu som”.

É… ainda temos muito o que aprender nessa vida.

Cheguei lá sem fazer a menor ideia do que o pessoal ia curtir. Sem demagogias, meu som não chega a ser “elitista”, mas tocar pra um público que se consistia em grande maioria de crianças também não é lá o meu perfil. Aí pensei em tocar umas coisas mais conhecidas, dentro do meu estilo de som – também não posso anular o que venho fazendo/trabalhando para constituir meu nome.

Aí tive a – horrível – decisão de abrir o show com “O mundo é bão, Sebtastião”. Desafinei. E desafinei rude. Enquanto isso, a banda seguinte – uma grande banda de uma dupla sertaneja – montava o palco atrás de mim na mesmo hora que eu tocava. Testava bateria, testava microfone e tal. E eu tocando.

Aí vi que umas três senhoras estavam na frente do palco esperando por algo. Já não tinha o meu público, já não tinha a atenção das crianças…. quer saber? Bora deixar a nossa marca né…. Toquei Sá e Guarabyra e me surpreendi com o resultado: nada como uma profecia do beato que dizia que o sertão ia alagar pra colocar umas cadeiras a bailar. Depois, pensei, vou fazer o povo ferver com a novela das oito e o “Trenzinho do Caipira”. Segundo erro grotesco da manhã. Desafinei feio. Mas feio mesmo. O trenzinho nem subiu a montanha, coitado; parou na metade por falta de fôlego.

Quando eu tentei tocar um Belchior, dois senhores se aproximaram do palco. Ambos muito simples: um de bermuda, camiseta, chinelo e cabeça branca, com algumas marcas nos braços; outro gordinho, de bonézinho, calça e chinelo também. O misto de vergonha pela desonra a Villa-Lobos e o recém ido Ferreira Goulart, repentinamente, fazia sentido. Sá, Guarabyra, Trenzinho do Caipira…. tudo faz parte do meu som, muitas vezes negligenciado pelo “pessoal da zona sul”. Sim, porque pouquíssimas foram as vezes que reconheceram o trenzinho…. “O sertão vai virar mar”, querendo ou não, virou hino de playboy querendo um arrasta-pé de bar com long-neck a dez conto.

Resolvi apertar o botão do “folk-se”: era hora de apelar.

Mal comecei os primeiros versos de Tocando em Frente, de Almir Sater e Renato Teixeira, e os meus cinco entusiasmados ouvintes entraram em um furor quase nunca dantes visto. “Você vai ficar muito associado a Almir Sater”, alertaram.

“TOMARA”, disse em voz baixa.

Sabe por que? Pois hoje me sinto mais forte; mais feliz, quem sabe… só levo a certeza de que muito pouco eu sei. Eu nada sei, acho.

Olhei pros dois senhores: o barrigudinho, com as pernas cruzadas e o braço encostado no palanque perto do palco, carregava aquele sorriso que todos nós fazemos, com a boca meio fechada de “putz… matou a pau”. Sabe aquela cara de contentamento, surpresa e devoção? Ela, só que dez vezes mais natural.

O outro senhor, por fim, fez da minha manhã de sábado no Linhares a experiência mais visceral que já tive té então tocando música dos outros.

“Como um velho boiadeiro levando a boiada vou tocando os dias pela longa estrada, eu vou; estrada eu sou”.

Essa frase fez a surrada camiseta verde revelar a barriga magra e irreverente por ter sido levada aos olhos e enxugar as lágrimas. Cá entre nós, sem melindres? Fazer alguém gritar “uhull” com John Mayer não é difícil. Mas um choro tão sincero, tão humilde, tão vivido e sofrido, destes que não nos deixam dúvidas do quão grato devemos ser por termos simplesmente a oportunidade “pequena” de tocar um coraçãozinho sequer, desses corações que são maiores que qualquer palácio dos Emirados Árabes mas que, por uma falta de vergonha do Cosmos, mora em um barraco simples e úmido… já até me perdi na frase.

Assim como me perdi na música. Errei a letra do terceiro verso; queria TANTO, mas TANTO mostrar praquelas lágrimas que cada um de nós compõe a sua própria história que acabei esquecendo de que todo mundo ama, um dia todo mundo chora; uns dias a gente chega, noutros vamos embora.

Mas será que esqueci ou que este verso era puro pleonasmo naquela hora?

No Linhares, com o meu receio burguês, eu tive a maior lição da minha vida:

CADA SER EM SI CARREGA O DOM DE SER CAPAZ E SER FELIZ.

E esse sorriso, que várias vezes julgo falso e forçado? Rapaz… agora eu sei que é porque eu já chorei demais.

E vou continuar chorando, enquanto houver boiada pra me mostrar que essa vida vai nos surpreender a cada nota. Quem sabe assim, quando eu for mais velho e mais sábio, eu não conheça o sabor das massas?

Ou o das maçãs.

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