A Idade Média Digital

Crônicas - Por José Roberto Abramo

28/02/2024

Junto ao neofundamentalismo evangélico, assistimos ao nascimento de um novo tipo de feudalismo, o digital, protagonizado pelas Big Techs.

Por por Salvio Kotter

Publicado em 28 de fevereiro de 2024 no GGN

Neofundamentalismo evangélico

Temos todos observado nas últimas décadas, com crescente preocupação, o avanço do neofundamentalismo evangélico. Este fenômeno não se limita a uma expressão de fé; ele busca influenciar ativamente esferas políticas e sociais, calcado em interpretações literais, extremas ou até mesmo distorcidas de textos sagrados. Este movimento conserva características medievais, como a busca da purificação pela fé cega e a rejeição de valores considerados modernos ou secularizados. A internet facilitou enormemente a disseminação dessas ideias, viabilizando e até ensejando a formações de comunidades virtuais em que tais visões de mundo são não apenas compartilhadas, mas também fortalecidas e amplificadas.

Feudalismo digital

Paralelamente ao neofundamentalismo evangélico, assistimos ao nascimento de um novo tipo de feudalismo, o digital, protagonizado pelas Big Techs. Detentoras das glebas virtuais e de uma influência sem precedentes sobre o espaço digital, essas empresas têm consolidado seu poder mediante práticas que replicam as dos senhores feudais da Idade Média, ao arrendarem espaços para que produzamos conteúdos que geram renda a ser compartilhada com os detentores das glebas, que a qualquer momento, caso não gostem do que estejamos produzindo, censuram e até mesmo nos expulsam da gleba que nos arrendaram. Todos senhores de sangue azul e pele alva. Enquanto isso, as Big Techs controlam o que vemos, o que consumimos e até como nos comunicamos, criando um ecossistema em que os usuários têm pouca ou nenhuma autonomia, embora tenham a ilusão de serem protagonistas. Esse domínio estende-se ao arrendamento de espaços digitais também para a publicidade, influenciando diretamente a economia global, enquanto fatura com, controla e censura as informações a serem compartilhadas.

Mesmo a mídia alternativa está maniatada. Se fizer um vídeo contra o neonazismo ucraniano ou o genocídio israelense, dando às coisas os nomes que elas têm, não só o vídeo, mas o próprio canal poderá ser banido. Significa dizer que, depois de absorver a quase totalidade da massa de investimentos em propaganda no país, as gigantes da tecnologia nos vigiam do ponto de vista ideológico. Afinal, são big techs ou big brothers?

Neofundamentalismo e Feudalismo Digital em Sinergia

A intersecção entre o neofundamentalismo evangélico e o feudalismo digital os potencializa mutuamente, e representa um desafio sem qualquer precedente à nossa sociedade. As ferramentas digitais oferecem aos movimentos neofundamentalistas uma plataforma sem paralelo para disseminar suas ideias, atingindo públicos globais (e fatura alto com isso), à medida que algoritmos tendenciosos amplificam conteúdos extremistas e simplificam a formação de câmaras de eco ideológicas.

Assim, está criado o ciclo vicioso em que as tecnologias facilitam a propagação de visões de mundo que anseiam por um retorno a um passado idealizado, enquanto simultaneamente pavimentam o caminho para uma nova era de obscurantismo, tudo isso viajando à velocidade da luz por conexões de fibra-ótica.

Ecos Medievais e a Nova Treva

A junção desses fenômenos gera a antevisão de uma nova Idade Média, caracterizada não apenas pela centralização do capital e do poder nas mãos de poucos, mas também pelo retorno de um pensamento dogmático e avesso ao questionamento. A possibilidade de escorregarmos para uma era de obscurantismo, em que valores iluministas como a racionalidade, a liberdade individual responsável, assim como a busca pelo conhecimento sejam postos de lado, torna-se uma preocupação crescente e exasperante. A hipnose coletiva proporcionada por modelos de comunicação baseados em algoritmos que reforçam convergências ideológicas e a dependência tecnológica, fortalece sobremaneira essa tendência.

Entre luz e sombra

As implicações desta possível nova Idade Média, marcada pelo obscurantismo digital e espiritual, são vastas. A interação entre o neofundamentalismo evangélico e o feudalismo digital ameaça comprometer os avanços sociais, políticos e tecnológicos que definiram as últimas décadas. À medida que caminhamos para o futuro, cabe-nos escolher entre ceder à hipnose coletiva e ao retrocesso ou buscar maneiras de sustentar os princípios de liberdade, pluralismo e progresso. Pelo poder que têm, as Big Techs precisam ser encampadas pelo poder público, pela ação política desvelada que têm praticado, os pastores fundamentalistas precisam ser contidos. As ações e o caminho a tomar não são simples nem lineares, mas o reconhecimento da encruzilhada em que nos encontramos é o primeiro passo para garantir que alguma luz da razão ainda ilumine esse nosso e o caminho das gerações vindouras, com as quais temos desde sempre um compromisso atávico, é dizer, intransferível.

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primeiro passo para garantir que alguma luz da razão ainda ilumine esse nosso e o caminho das gerações vindouras, com as quais temos desde sempre um compromisso atávico, é dizer, intransferível.

Sálvio Kotter passou por formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudida, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.

https://jornalggn.com.br/opiniao/a-idade-media-digital-por-salvio-kotter/

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