Uma doutrina econômica mundial pode prejudicar sua saúde mental?

Crônicas - Por José Roberto Abramo

25/09/2023

Como o neoliberalismo faz mal à nossa saúde mental

As sociedades neoliberais tornam os seus cidadãos fisicamente e mentalmente doentes. Este efeito aumenta na medida em que as sociedades sejam mais desiguais e que os cidadãos estejam mais desprotegidos da “competitividade” do mercado livre. Por Ruth Cain.

12 de Fevereiro, 2022 – 14:44h – Esquerda.net

Ruth Cain é professora na Universidade de Kent.

Texto publicado originalmente no The Conversation a 30 de janeiro de 2018. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

Há uma percepção generalizada de que a doença mental cresce no Ocidente, a par com um declínio prolongado do bem-estar coletivo. A ideia que há causas sociais e económicas por detrás deste declínio é cada vez mais forte, num contexto de uma economia zombie e de uma austeridade esmagadora que se seguiram ao colapso financeiro global.

Há, particularmente, uma preocupação crescente com as condições e efeitos do neoliberalismo – o turbilhão enervante da privatização implacável, a desigualdade crescendo em espiral, a retirada de apoios e benefícios básicos do Estado, as exigências de trabalho cada vez maiores e mais inúteis, as notícias falsas, o desemprego e trabalho precário – são parcialmente culpados.

E talvez o mais cansativo sejam as ordens invasivas, mas distantes, dos meios de comunicação social, das instituições estatais, anúncios, amigos ou empregadores para se auto-maximizar, ser perseverante, agarrar a sua fatia desse bolo que continua a diminuir, “porque vales a pena” – apesar de ter de o provar constantemente, todos os dias. No nosso trabalho ou lazer, somos instados a fingir entusiasmo permanente no contexto de expetativas radicalmente baixas. A novilíngua neoliberal esvazia a terminologia do sucesso, instando a gabar-se da “excelência” e da “dedicação” pessoal, à medida que as possibilidades reais de sucesso diminuem e o trabalho se torna desprovido de sentido. No meu local de trabalho, os uniformes do pessoal de limpeza estão estampados com inscrições que anunciam que se dedicam ao seu trabalho com “paixão, profissionalismo e orgulho” – como se fosse razoável exigir “paixão” a um trabalhador da limpeza que ganha o salário mínimo (10.843,15 Reais, se convertido para moeda brasileira) e cuja carga de trabalho duplicou desde 2012 (isto no Reino Unido, imagina se a autora estivesse falando do Brasil. Com seria?).

“A livre escolha”

Um colega informou-me recentemente que as crianças pequenas nas Bermudas corrigem o mau comportamento entoando: “quero fazer boas escolhas”. Como os criminologistas Steve Hall, Simon Winlow e Craig Ancrum exploraram, as “escolhas” tornam-se de vida ou de morte quando uma má escolha ou duas te podem tornar num “perdedor” irremediável. É-nos dito que as barreiras estruturais à aspiração, sucesso e contentamento dissolver-se-ão na nossa economia de “escolha” de fantasia.

Esta falsidade da “livre escolha” desmotiva e despolitiza. Num mundo destes, a depressão, a ansiedade, o narcisismo (a defesa primitiva do eu infantil contra ataques esmagadores) são respostas completamente lógicas. Foi confirmado que as sociedades neoliberais tornam os seus cidadãos fisicamente e mentalmente doentes; este efeito aumenta na medida em que as sociedades sejam mais desiguais e que os cidadãos estejam mais desprotegidos da “competitividade” do mercado livre.

Neste contexto, a depressão pode parecer quase como uma forma de auto-proteção: uma auto-exclusão de uma série de competições contínuas de que não se pode sair vencedor. O aumento recente de diagnósticos de doenças mentais e de “perturbações do desenvolvimento” que envolvem estados de agitação e hiper-estimulação é igualmente interessante.

No caso do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, por exemplo, a hiperatividade e a distração das pessoas tornam-nas oficialmente portadoras de uma “desordem” ou mesmo incapacitadas, na medida em que são supostamente incapazes de lidar com um ambiente hiperestimulante do capitalismo tardio. No entanto, estão, noutro sentido, inteiramente sintonizados com uma economia de distração permanente, na qual a atenção é repetidamente captada e explorada financeiramente.

Auto-medição

Os cuidados de saúde liberalizados requerem que cada paciente (ou melhor, “cliente” de “serviços” de saúde) assuma a responsabilidade pelo seu próprio estado ou comportamento. O cuidado mental está assim a ser reenquadrado como uma série de “resultados” voltados para melhorias mensuráveis que o “usuário do serviço” deve gerir por si próprio na medida do possível. O acesso a um diagnóstico psiquiátrico e ao apoio de serviços públicos (e também ao dos esquemas de saúde ocupacional privados ou geridos pelos empregadores) dependem por vezes da conclusão de um diário sobre a disposição ou os sintomas através de telemóvel (celulares) ou de técnicas de auto-rastreio (Fitbit, dispositivos vestíveis, com foco em saúde e na prática de atividades físicas). E podem passar a haver consequências futuras mais punitivas pelo fracasso do auto-rastreio à medida que empregadores e talvez a Segurança Social venham a ter mais poder para exigir este tipo de desempenho aos seus trabalhadores. Esta “revolução” das aplicações “mHealth” (mobile health) também mostra como a doença mental e a própria ansiedade acerca da saúde mental podem ser habilmente transformadas em mercadorias e financeirizadas. Aplicações de auto-medição como o MoodGym (é um programa online gratuito que visa reduzir sintomas leves a moderados de depressão e ansiedade, ensinando-lhe os princípios da terapia cognitivo-comportamental) foram compradas pelo Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido para uso dos seus pacientes. Ao monitorizar-se, o paciente é persistentemente encorajado a demonstrar que está se “recuperando”, independentemente de poder estar incapaz a longo prazo. Também se está a dizer que a recuperação é baseada na “capacidade para o trabalho” uma vez que é esperado que um adulto válido esteja envolvido em atividade de trabalho sempre.

Este foco na capacidade para o trabalho explica parcialmente a relativa escassez de serviços de saúde mental para crianças no Reino Unido, que tem um número catastroficamente baixo de camas e está entre os primeiros a ser privatizado.

Cuidado – ou gestão de risco?

Os estados neoliberais livram-se de custos do cuidado individualizando e privatizando estas tarefas. As pessoas que demonstrem sintomas perturbadores são divididas entre as “perigosas”, contra as quais métodos de contenção punitivos ou autoritários podem ser usados, e as que são abandonadas a lidar com a situação com os recursos que elas ou as suas famílias tenham.

Nos anos 1970-80 assistiu-se ao encerramento dos últimos manicómios no Reino Unido e ao bem-vindo fim da institucionalização por longos períodos das milhares de pessoas classificadas como “loucas” e às quais o direito à liberdade era retirado. Ao mesmo tempo, o Estado parecia ter feito poupanças significativas transferindo os pacientes de volta à “comunidade”, parecia uma situação vantajosa em ambos os aspetos. Mas, meio século depois do “tratamento na comunidade” se ter transformado na norma para os pacientes mais cronicamente doentes, o tratamento comunitário é travado por orçamentos reduzidos, baixos níveis de pessoal contratado e de moral. Os serviços psiquiátricos do NHS [o Serviço Nacional de Saúde britânico] estão sistematicamente desprovidos de recursos e lutam para conseguir cumprir os encargos legais que lhes são impostos para fornecer cuidados básicos.

De maneira cada vez mais frequente, é a polícia que trata na “primeira linha” as crises de saúde mental no Reino Unido. As prisões tornam-se “armazéns” para pessoas com problemas de saúde mental. Entretanto, nas prisões dos EUA, as alas de “saúde mental” hospedam prisioneiros com tendências suicidas ou instáveis mental ou emocionalmente, colocando-os em vestuário e celas especiais “à prova de suicídio”, por vezes em isolamento prolongado.

Qualquer pretensão de cuidado acabará por recuar em favor da proteção contra litígios no contexto prisional. Os “coletes anti-suicídio” são agora colocados em pacientes que parecem suicidas ou psicóticos quando entram na prisão ou durante o encarceramento em muitos estados dos EUA e são usados mesmo em tribunal.

Que formas há, então, de resistir a estas tendências preocupantes? O humor negro é uma forma de lidar com sistemas que instam à “positividade” ao mesmo tempo que nos informam a cada passo que já somos um “perdedor”. Mas as coletividades de vários tipos serão a nossa melhor proteção. Como o psicólogo Paul Verhaeghe prevê, a era do “indivíduo completamente sem alívio” (provavelmente) já atingiu o seu limite. O que está além do limite, particularmente para aqueles já destruídos ou presos nas garras punitivas do “cuidado” carcerário, é menos claro.

Esta matéria foi retirada de

https://www.esquerda.net/artigo/como-o-neoliberalismo-faz-mal-nossa-saude-mental/79362

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