Do velho ao novo sistema jagunço

Comportamento - Por José Roberto Abramo

12/07/2023

Nathan Caixeta – Em homenagem ao esforço docente de Marcio Pochmann

 Marcio Pochmann|01/01/23|ArtigoPolíticaSociedade e Cultura

Publicação Original de:

Ilustração: Mihai Cauli 

O deslocamento do dinamismo econômico das regiões metropolitanas e de base industrial para o interior primário-exportador tem sido acompanhado desde o final do século 20 pela geração de um novo e crescente excedente de mão de obra no país. É o resultado direto da opção nacional pelo ingresso passivo e subordinado à globalização, cuja estagnação econômica, subdesenvolvimento e mobilidade social decrescente demarcaram o rebaixamento capitalista traduzido pela ruína da sociedade urbana e industrial.

Não apenas as periferias metropolitanas, mas também os centros das grandes cidades próximas das regiões litorâneas foram afetados negativamente pela dinâmica do capitalismo financeiro gerador de população sobrante a inchar a economia popular e de subsistência de contida produtividade. Concomitantemente, o aparecimento do novo sistema jagunço encontrou condições favoráveis para a sua estruturação e desenvolvimento em plena transição para a Era Digital.

Diante do cotidiano desesperançoso e exposto à violência e à precarização da vida e do trabalho, o poder paralelo de igrejas, crime organizado e milícias avançou. Apoiados em extensa massa populacional sobrante nas cidades, o fanatismo religioso e o banditismo social criaram raízes férteis, protagonizadoras de um novo sistema jagunço de dimensão urbana no Brasil.

Neste primeiro quarto do século 21, a exclusão capitalista molda antagonismos que ascendem de forma inédita na organização de “baixo para cima” de natureza rebelde e contrassistêmica, desafiadora da própria ordem burguesa. Mesmo sem apresentar ainda um projeto global de sociedade, parece capaz de estruturar a base da pirâmide social em redes sociais que interconectadas – interna e externamente – oferecem um horizonte escapatório à opressão do poder institucionalizado e cultural e do modo de vida sem sentido, irrelevante ao Estado e à retórica privatista.

Distante da política tradicional e das instituições da República, cada vez mais vistas com descrédito e ineficiência, o novo sistema jagunço moderno revela o quanto o capitalismo no Brasil tem pouco a oferecer às massas sobrantes. Neste ambiente de luta de todos contra todos, os mais preparados se mostram capazes de obter benefícios, seja pela perspectiva de amparo e prosperidade religiosa, seja pela concretude da ascensão material e do status proveniente das ações ilegais e violentas.

Há mais tempo, autores de sensibilidade aguçada como Ignácio de Loyola Brandão (Não verás país nenhum, 1981), Chico Buarque de Holanda (O estorvo, 1991), Roberto Schwarz (Sequências brasileiras, 1999) chamaram a atenção para o que já estava em curso no Brasil contemporâneo. Se a implementação do projeto tenentista de construção da sociedade urbana e industrial havia interrompido o antigo sistema jagunço próprio da sociedade agrária, a ruína da sociedade industrial colocava em cena o novo sistema jagunço urbano.

Até a Revolução de 1930, a hegemonia do modelo econômico primário-exportador convivia com a geração ampliada da população excedente aos requisitos do capitalismo nascente, o que funcionava como base para a fundamentação do banditismo social e fanatismo religioso, especialmente no interior rural do país. Com isso, a longeva e primitiva experiência da sociedade agrária convivia com seus próprios antagonismos sociais, muito bem retratados pela literatura regional do país (José de Alencar em O sertanejo de 1875, Rachel de Queiroz em O Quinze de 1930, Graciliano Ramos em São Bernardo de 1934 e outros).

Mas foi pelas mãos de Euclides da Cunha em Os Sertões de 1902 e de Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas de 1956 que o fenômeno da jagunçada e do cangaço foi associado à manifestação de protesto ao sistema real de poder da época. Também seria considerado como tentativas de exercício privado pela violência de segmentos sociais expostos à provisoriedade da vida e em defesa da legitimidade de organização contrária ao curso da ordem burguesa em formação.

À margem da estruturação do capitalismo nascente e sob a desigualdade crescente derivada do deslocamento do centro dinâmico da economia para o sul do Brasil, vários movimentos populares e de subsistência emergiram em convergência com messianismo e banditismo social no interior de distintas regiões do país. Diante da destruição das referências do passado e da ausência de futuro promissor, a crença no aparecimento de alguém com poderes especiais para germinar a prosperidade e a paz marcou a fase inicial do capitalismo no Brasil.

De um lado, a tríade messiânica identificada pelas revoltas de Canudos (1896-1897), do Contestado (1912-1913) e de Juazeiro (1913-1914) consagrou o papel de lideranças de base religiosa, respetivamente, Antônio Conselheiro, João Maria Agostini e Padre Cícero. De outro, o banditismo social associado às questões sociais e fundiárias nas distintas regiões brasileiras caracterizou-se por eventos e atitudes violentas dos grupos de massas empobrecidas, armadas e sem oportunidades.

Entre 1870 e 1940, o país conviveu com a novidade dos bandidos sociais voltados para valores morais da família e a luta pela justiça social, cujos ataques às grandes fazendas visavam retirar de ricos algum alimento ou dinheiro para a sua própria sobrevivência e da família. As experiências de distintas lideranças proliferaram no Brasil, especialmente no interior nordestino, como no protagonismo de Jesuíno Alves de Melo Calado (Jesuíno Brilhante) na década de 1870, de Virgulino Ferreira da Silva (Lampião) entre 1920 e 1930 e de Christiano Gomes da Silva Cleto (Corisco) nos anos de 1940.

Ainda que diferente do contexto agrário do passado, o novo sistema jagunço urbano se alimenta, na atualidade, da ausência de mobilidade social e do abandono do horizonte de expectativas crescentes, próprios da ruína da sociedade industrial. O que resta do rebaixamento capitalista imposto ao modo de vida e trabalho à população sobrante no Brasil nas últimas décadas, dominada pela estagnação da renda per capita e pelo empobrecimento, em meio à modernização consumista descentralizada do trabalho, é o fortalecimento do sentimento contrassistêmico.

A política como gestão das massas sobrantes conduzida pelo ciclo da Nova República se mostrou capaz de postergar catástrofes crescentes. Mas isso, por si só, também terminou sendo compatível com a estruturação e o avanço do novo sistema jagunço urbano no Brasil, cuja conexão com as novas tecnologias de comunicação e informação promovem rebeldia e questionamento provenientes do andar de baixo da sociedade à própria ordem burguesa e aos poderes institucionalizados.

REFERÊNCIA À MARCIO POCHMANN

Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

NATHAN CAIXETA

Graduado em Economia pela FACAMP, Mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e Pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP

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