Autoconhecimento é encarar a realidade sair da sua caverna

Mito da Caverna

Comportamento - Por Vai Ali

20/02/2020

O Mito da Caverna narrado por Platão em sua obra A República, assim como a ideia de maya descrita por Sankara, são representações metafóricas que falam sobre uma realidade aparente, mais uma relação entre atitudes filosóficas de Índia e Grécia Antiga.

Dê uma olhada a sua volta. O que você vê? Escuta algum barulho? Sente suas roupas em contato com a sua pele? O que você percebe neste momento?

Imagine que tudo isso que você acabou de perceber não passa de uma grande ilusão criada pelos seus sentidos. Parece loucura?

Assim como no filme “Matrix”, onde tudo é parte de uma grande simulação, nossos filósofos em análise criaram teorias para explicar a realidade ilusória em que vivemos imersos.

A força de maya impede que possamos enxergar a verdadeira realidade, assim como a caverna de Platão escondia de seus prisioneiros o mundo real. Lembra um pouquinho a Matrix do filme?

Seja em Platão, Shankara ou em um filme de de ficção científica, as analogias nos dão a oportunidade de questionar a realidade em que vivemos e perceber o mundo através de novas perspectivas.

Ambas as tradições acreditam que a ilusão durante a condição existencial é produzida pela ignorância sobre a identidade da alma. E somente por meio do autoconhecimento poderia-se chegar a verdade.

Da mesma maneira que nos textos anteriores, iremos nos basear em obras importantes tanto à tradição grega Socrático-platônica, quanto na tradição hindu Advaita Vedanta, em busca de uma compreensão mais profunda do autoconhecimento como atitude mística-filosófica.

Uma outra percepção da realidade

Sankara diz em sua obra “A Jóia Suprema da Sabedoria” que o “véu” de maya é a forma representativa do poder de Brahman de criar ilusões através dos sentidos como forma de ocultar a sua verdadeira realidade daqueles que ainda não estão libertos dos desejos.

A maior parte das tradições compreendidas no hinduísmo, apesar de bastante heterogêneas entre si, acreditam na existência do atman, a alma eterna. O atman não pode ser, em sua última instância, distinguido de Brahman princípio de unidade que articula a totalidade do real.

A tradição Advaita Vedanta defende essa premissa, uma vez que considera tudo que existe como pertence a uma mesma unidade transcendente.

Segundo os Upanishads, aqueles que tomam consciência do atman como Brahman e o âmago de si próprio atingem a libertação (moksha). Os Upanishads possuem a capacidade de eliminar a ignorância fundamental que recobre a identidade de atman. 

Entretanto, para o ser chegar à libertação e transcender ao ciclo de mortes e renascimentos (samsara) é preciso se desprender de toda a ação fruto do desejo, o famoso karma, deixando de atender as vontades do ego.

O discípulo deve buscar unicamente ao cumprimento de seu dharma, cujo sentido último não está contido nas palavras, mas na experiência.

“Não é teoria religiosa nem filosófica. Uma vida bem examinada e investigada, onde exista autoconhecimento (como disse Sócrates), é uma vida que encontra a Verdade, que encontra seu caminho, que encontra o Dharma. Se o universo fosse um rio, o fluxo desse rio seria o Dharma” Dharmalog

Levar uma vida de retidão, devoção e justiça, voltada para a natureza da alma, de acordo com o seu dharma, seria a chave para libertação de todo o sofrimento segundo a tradição Advaita Vedanta.

Os desejos são fruto da ilusão de que ainda precisamos de algo para nos completar. Ao passo que adquirimos sabedoria vamos substituindo ações interessadas pela “reta ação” ou karma yoga.

O caminho do karma yoga, descrito principalmente no Bhagavad Gita, produz uma transformação na forma mental de como se experiencia o mundo. Karma yoga é como a filosofia Vedanta expressa um método de ação que leva ao conhecimento interior.

Mito da Caverna 

Por volta de quatro séculos antes de Cristo, o filósofo grego Platão em sua obra A República narra o Mito da Caverna ou a Alegoria da Caverna, uma das ideias filosóficas mais conhecidas e estudadas mundialmente.

Conta o Mito que dentro de uma caverna existiam prisioneiros acorrentados de frente para uma parede, na qual, se refletiam representações do que estava do lado de fora da caverna.

Mito da Caverna

O Mito da Caverna

Para aqueles homens que ali cresceram, as sombras eram o mundo real. Porém, um dia, um dos prisioneiros, com muito esforço, conseguiu se libertar das amarras e sair da caverna

A princípio, com a vista ofuscada pelo sol nunca antes contemplado, teve que se adaptar à luz, para que pudesse enxergar toda a beleza da verdadeira realidade

Maravilhado com o novo mundo descoberto, o prisioneiro liberto resolveu voltar à caverna, queria ajudar seus antigos companheiros para que pudessem ver também toda aquela beleza.

Mas, conforme voltou e contou sua experiência de liberdade, foi visto como louco e assassinado pelos que tentou ajudar, sua atitude poderia ser perigosa à ordem.

Por meio da alegoria Platão faz referência a ilusão em que vivemos no mundo fenomênico, a alma quando está encarnada em um corpo se esquece da sua verdadeira identidade e por isso o buscamos o autoconhecimento, para relembrarmos quem somos verdadeiramente.

Platão acredita que além do nosso mundo, chamado mundo sensível, existe uma realidade inteligível, chamada de mundo das ideias, onde tudo é perfeito e imutável. É desse mundo arquetípico que vem a alma imortal.

A metáfora apresentada pelo Mito da Caverna tem um propósito pedagógico, busca levar o indivíduo a questionar sua própria condição existencial e fazer com que desperte para o conhecimento da alma.

Esse é o sentido da práxis filosófica e ocupação principal de um filósofo, buscar aproximar-se da sabedoria através do autoconhecimento, do conhecimento da alma, do verdadeiro eu, que transcende o corpo e os sentidos.

 

Misticismo

Ainda hoje, existem dificuldade à compreensão do misticismo, pois a partir do século XIX sua imagem se voltou para a compensação do que seria um exagerado racionalismo iluminista.

O misticismo é visto como algo que rejeita a institucionalização das religiões, como se não houvesse a necessidade de uma vida voltada à disciplina ou não houvesse um método de aprendizagem.

É como se a experiência mística estivesse em relações com algo além desse mundo e acontecesse de forma individualizada e inesperada.

Essa perspectiva deixaria de levar em conta algumas tradições consagradas que também podem ser consideradas místicas, como os pitagóricos, a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles.

No contexto oriental, a tradição indiana dos Upanishads destaca-se como uma dessas tradições onde ‘filósofo transformacional’ e ‘místico racionalista’ se confundem.

 O foco deixa de estar na experiência mística, passando a recair sobre a apresentação de uma “mistagogia”, uma pedagogia mística, um método de conhecimento.

O caminho para realização e conhecimento da totalidade é mais importante que a descrição de experiências, uma vez que, essas experiências nada mais são que estar no mundo e perceber dimensões que não eram percebidas anteriormente.

Na Índia, não houve esforços para separar o que pertence à religião e o que pertence à filosofia, considera-se que, o mais importante em uma obra é a sua eficácia transformadora. Ela deve servir ao processo de remoção das falsas verdades, uma vez que não há nada novo a ser descoberto.

Os Upanishads, não revelam a natureza de atman, ou da alma, mas ajudam a eliminar os erros que faz com que a gente não a enxergue bem. Assim como um remédio é usado quando há alguma doença, servindo ao tratamento e a remoção da causa da dor. 

Podemos encontrar na filosofia socrática algumas similaridades com a tradição dos Upanishads. Sócrates adotou um método filosófico que não se caracteriza pela transmissão de um saber positivo, e sim por levar o indivíduo à aporia, ou seja, à impossibilidade de conjeturar um saber.

O filósofo grego fazia com que seus interlocutores chegassem as próprias respostas racionalmente, o diálogo serve para levar o indivíduo a se questionar permanentemente, questionando assim suas próprias conclusões.

Seu método de ensino é baseado nos que julgam já saber, de modo a fazer com que enxergassem a própria ignorância. O filósofo acreditava que o caminho do autoconhecimento era solitário e se dizia apenas responsável por despertar a consciência do equívoco sobre a realidade, de forma crítica e racional.

O caráter singular da funcionalidade negativa dessas pedagogias reside no fato de não haver qualquer outra funcionalidade de caráter positivo, já que o objetivo último a que visa não constitui algo não conhecido anteriormente, mas sim, algo que é conhecido pelo ser e que já faz parte de sua natureza.

Ele só não consegue enxergar com clareza devido a ignorância que tem sobre a própria natureza. O ser sofre porque desconhece a realidade tal como ela é e a constitui como dual, e assim, deseja as coisas como forma de se completar.

O sofrimento é o reconhecimento de que há algum problema a ser sanado, que é a ignorância. 

Deste modo, a  ignorância passa a existir quando uma condição aparece e há alguma ilusão, essa percepção não afeta a realidade das coisas tais como elas são.

Quando compreendemos há a transformação imediata, e a realidade pode ser enxergada de forma clara, pois sempre esteve ali.

Pensemos de forma alegórica: imagine que você chega a uma sala com pouca luminosidade, onde vê algo no chão que parece ser uma cobra. Com medo de ser picado por ela você logo se assusta.

Por sorte, alguém entra na sala e acende a luz e, então, você percebe que na verdade o que estava no chão não era uma cobra, mas apenas uma corda, fazendo todo o medo desaparecer.

Podemos perceber através da analogia que, independente da fantasia criada, a realidade sempre se manteve a mesma. Por mais que no momento em que se estava com medo a cobra parecesse real é possível chegar à verdade quando as luzes se acendem.

Percebe-se imediatamente a realidade tal como ela é no momento em que se toma consciência da confusão. O que demonstra a possibilidade de esclarecimento do erro que foi subjetivamente determinado.

Assim como a realidade sempre esteve presente na alegoria apresentada, a dimensão de totalidade está sempre presente em toda existência humana. Brahman nunca se afasta, o próprio indivíduo é que se vê longe quando não entende sua presença.

Cabe ao filósofo remover todas as falsas percepções que possui e passar a enxergar a verdadeira realidade, para então se livrar de todas as amarras que o prende na Caverna.

Para conhecer a verdade das coisas é preciso um doloroso processo de autoconhecimento que, uma vez enfrentado, torna o ser capaz de discernir a realidade da ilusão.

Esse processo não se dá de uma hora pra outra, é preciso um método, um mestre e ações que vão constituir um modo de viver que caracteriza o filósofo clássico.

No próximo texto vamos entender mais sobre como uma tradição filosófica dá o suporte necessário ao ser quem busca o conhecimento sobre si mesmo e a felicidade.

Diferente do filósofo de livraria contemporâneo que se refugiou na subjetividade do discurso, a filosofia à maneira clássica não se limita a teorias intelectuais dissociadas da ação. É preciso uma forma de vida que proporcione o autoconhecimento e o exercício das virtudes.

Através da compreensão dessa vida filosófica que envolve tanto a tradição Socrático-platônica, quanto a tradição Advaita Vedanta chegaremos ao último texto da série “Autoconhecimento, um caminho espiritual”.

Você que chegou até aqui, espero que esteja sendo uma agradável leitura. Tem alguma dúvida? Pode me deixar um comentário que ficarei feliz em responder. Tem alguma sugestão de tema para nossa próxima aventuras filosófica? Manda pra mim!

Luiza Goulart 

Filósofa, dançarina, professora e coreógrafa. Membra do conselho internacional de Dança da Unesco, Luiza também gosta de estudar sobre empreendedorismo e habilidades comportamentais que só você tem.

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