A partir do diálogo entre um filósofo grego, Platão e o outro hindu, Sankara, foram introduzidos conhecimentos metafísicos ocidentais e orientais como forma de evidenciar sua relevância prática para conflitos e sofrimentos que ainda vivemos hoje.
Ambas as tradições nos dão recursos pedagógicos, práticas de vida, que podem nos levar a um estado de completude e felicidade, sem que para isso seja preciso se retirar do mundo ou viver em um monastério isolado.
O autoconhecimento é para Platão e Shankara um caminho reflexivo tanto racional, quanto espiritual, e que pode ser trilhado por pessoas comuns que tenham em si o desejo de libertação latente.
Em muitas vezes relacionadas ou com a religião ou com a filosofia, são inúmeras as respostas possíveis para qual seria o “sentido da vida” e a vontade de encontrar esse sentido nos leva a questionar toda a existência.
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Deus existe? O que é Deus?
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Por que estou vivo?
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O que acontece depois da morte?
Questões que nos fazem refletir sobre o real sentido disso tudo que estamos vivendo, que podem nortear nossas vidas de acordo com as respostas que encaramos como verdade. No que você acredita?
Imortalidade da alma
Podemos dizer que Platão acreditava na transmigração da alma. Para o filósofo grego, a alma pode ser caracterizada como sendo invisível, imutável e eterna, de modo que, mesmo após a morte do corpo, ela continua a existir.
Um dos argumentos utilizados pelo filósofo para defender essa hipótese refere-se à Teoria dos Contrários, segundo a qual há a presença dos opostos em todos os níveis existenciais.
Por exemplo: frio e quente, alto e baixo, claro e escuro….
Esse princípio poderia ser também aplicado à vida e à morte, sendo os vivos originários dos mortos e os mortos dos vivos.
De acordo com o Fédon, uma das obras platônicas mais estudadas e conhecidas, só é possível conhecer a verdadeira essência das coisas por intermédio da alma.
Fédon de Élis narra no diálogo o que aconteceu nas últimas horas de vida de Sócrates e do que se falou antes dele ser executado devido a acusação de corromper a juventude e difundir ideias contrárias à religião tradicional.
Vendo o sofrimento dos seus discípulos diante de sua morte, Sócrates percebe que precisa explicar melhor sobre a realidade da alma e porque não é preciso sofrimento.
O filósofo explora vários argumentos a favor da imortalidade da alma, a fim de demonstrar que existe sim vida após a morte e que a alma vai continuar a existir depois dela.
“O exercício próprio dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?” Sócrates
A partir dessa perspectiva, o corpo parece ser um empecilho ao conhecimento da verdade, podemos pensar que só será possível alcançar a sabedoria e felicidade plena após a morte.
Não para Platão! Se considerarmos o sentido mais profundo de suas palavras. Em sua obra, o último dia da vida do mestre Sócrates é contado a partir de um diálogo literário.
A morte de Sócrates pode ser interpretada como um processo metafórico, sendo esse processo a principal ocupação de um filósofo, que busca contemplar a sabedoria absoluta antes mesmo de morrer.
Pierre Hadot, grande estudioso da filosofia antiga, aponta o diálogo platônico como sendo essencial a transformação do ser, um exercício espiritual.
É através do exercício do diálogo, da prática espiritual para o conhecimento, que está inserida a questão da vida e da morte no Fédon. Para Platão o uso da dialética é o que qualifica o filósofo como sendo aquele que busca a verdade em si.
Podemos dizer que para Platão buscar sabedoria consiste em preparar-se para morrer e em estar morto, de modo a desfrutar o que é próprio da alma antes mesmo de se desligar do corpo.
Verdadeira Identidade
Embora Platão seja constantemente apontado como o fundador do pensamento filosófico que separa e contrapõe o corpo e a alma, o dualismo platônico, através da comparação com a filosofia Advaita Vedanta, não dualista, buscaremos entender a dualidade como partes de uma coisa só.
Muito do que sabemos sobre Platão a respeito de seus diálogos e mitos pode nos remeter à famosa obra indiana sobre autoconhecimento (ou yoga), o Bhagavad Gita, um dos textos canônicos da escola hindu Advaita Vedanta.
O poema místico-filosófico de mais de 5.000 anos da tradição milenar indiana está contido no Mahabharata, o grande poema épico escrito em sânscrito, que difunde os princípios do hinduísmo.
O Bhagavad Gita, que pode ser traduzido como “A Canção do Divino”, é o mais importante texto indiano, de onde provém grandes ensinamentos sobre espiritualidade e onde encontramos a raiz do yoga.
Ao mesmo tempo em que o Gita apoia o ideal de renúncia completa do mundo em favor da autorrealização e libertação, propõe também a renúncia interna, em vez de externa.
“Sua escolha é somente quanto à ação, jamais quanto ao resultado. Não queira ser a causa do resultado da ação, tampouco esteja sujeito a inação”. BHAGAVAD GITA
Não é saindo desse plano para outro diferente que se chegará à salvação, é preciso haver uma mudança na forma de estar no mundo, refletindo no interior da própria ação.
No Bhagavad Gita é possível entender noções fundamentais acerca da transmigração através do diálogo entre Krsna, representante da Suprema Personalidade de Deus, e seu discípulo, Arjuna.
Conforme relata a obra, durante uma grande guerra que teria ocorrido no Norte da Índia, um guerreiro (Arjuna), em pleno campo de batalha, vive um impasse:
Lutar e matar pessoas que ama ou renunciar seu dever (dharma) de guerreiro?
A mensagem narrada pelo Gita busca levar o indivíduo a compreensão da diferença entre alma (eu verdadeiro) e corpo. Arjuna simboliza a confusão da alma que transmigra e o cenário de guerra representa um risco eminente de morte.
A verdadeira identidade é espiritual e temos a oportunidade na vida humana de desenvolver a consciência pura e perfeita de nós mesmos.
Krsna fala também sobre a inevitabilidade da morte e do renascimento, uma vez que para aqueles que nascem à morte é certa e para aqueles que morrem o nascimento é certo.
Para Shankara o estudo da filosofia não dualista (advaita) leva a transformação do ser. Isto é, quando o indivíduo busca a sabedoria para se identificar com a essência do ser, ele se aproxima da libertação do sofrimento causado pela ignorância.
Sankara, como grande admirador do Bhagavad Gita e um dos seus comentadores mais importantes, acreditava que, embora o universo dos fenômenos seja de fato experimentado, ele não é a verdadeira realidade.
Podemos destacar vários pontos em comum entre Sankara e Platão, dentre eles a forma com que apresentam seu discurso filosófico, utilizando-se da literatura para composição das obras.
Ambos os filósofos apresentam diálogos repletos de simbolismos e possuem uma notável capacidade de falar sobre temas sutis, mas extremamente pertinentes à humanidades.
Existem realmente muitas analogias entre as atitudes filosóficas da Antiguidade e as do Oriente, analogias que não podem ser explicadas por influências históricas.
Platão e suas obras como resultados da cultura grega, nos proporciona uma justificativa mais racional, através de uma linguagem lógica e organizadora. Enquanto que o Bhagavad Gita nos transmite maior expressividade, própria da poesia, de forma mística e alegórica.
Muito além de nomenclaturas e formas de narrativas, o objetivo das tradições apresentas é nos servir como caminhos para nós mesmos. Uma vez que cada ser é único no mundo, cada caminho de autoconhecimento também será único.
Vivemos tentando constantemente nos completar, satisfazer nossos desejos e muitas vezes projetamos nossas expectativas nas pessoas e no mundo à nossa volta. O que ainda está nos faltando para sermos felizes?
No próximo texto vamos entender melhor como a consciência de quem somos, desenvolvida através da prática de uma vida filosófica, é para os filósofos Platão e Shankara a resposta para uma vida sem sofrimento.
Se você pensa que isso é para pessoas iluminadas e que você está muito longe disso, saiba que o filósofo não é um sábio já pronto, mas aquele que busca o saber e tem plena consciência que ainda há um longo caminho de dedicação.
Luiza Goulart
Filósofa, dançarina, professora e coreógrafa. Membra do conselho internacional de Dança da Unesco, Luiza também gosta de estudar sobre empreendedorismo e habilidades comportamentais que só você tem.