A partir do diálogo entre um filósofo grego, Platão e o outro hindu, Sankara, foram introduzidos conhecimentos metafísicos ocidentais e orientais como forma de evidenciar sua relevância prática para conflitos e sofrimentos que ainda vivemos hoje.
Ambas as tradições nos dão recursos pedagógicos, práticas de vida, que podem nos levar a um estado de completude e felicidade, sem que para isso seja preciso se retirar do mundo ou viver em um monastério isolado.
O autoconhecimento é para Platão e Shankara um caminho reflexivo tanto racional, quanto espiritual, e que pode ser trilhado por pessoas comuns que tenham em si o desejo de libertação latente.
Em muitas vezes relacionadas ou com a religião ou com a filosofia, são inúmeras as respostas possíveis para qual seria o “sentido da vida” e a vontade de encontrar esse sentido nos leva a questionar toda a existência.
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Deus existe? O que é Deus?
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Por que estou vivo?
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O que acontece depois da morte?
Questões que nos fazem refletir sobre o real sentido disso tudo que estamos vivendo, que podem nortear nossas vidas de acordo com as respostas que encaramos como verdade. No que você acredita?
![Ilusão do sofrimento](https://vaiali.com/wp-content/uploads/2020/01/texto2-a-ilusao-do-sofrimento.jpg)
Foto: Brenda Marques
Imortalidade da alma
Podemos dizer que Platão acreditava na transmigração da alma. Para o filósofo grego, a alma pode ser caracterizada como sendo invisível, imutável e eterna, de modo que, mesmo após a morte do corpo, ela continua a existir.
Um dos argumentos utilizados pelo filósofo para defender essa hipótese refere-se à Teoria dos Contrários, segundo a qual há a presença dos opostos em todos os níveis existenciais.
Por exemplo: frio e quente, alto e baixo, claro e escuro….
Esse princípio poderia ser também aplicado à vida e à morte, sendo os vivos originários dos mortos e os mortos dos vivos.
De acordo com o Fédon, uma das obras platônicas mais estudadas e conhecidas, só é possível conhecer a verdadeira essência das coisas por intermédio da alma.
Fédon de Élis narra no diálogo o que aconteceu nas últimas horas de vida de Sócrates e do que se falou antes dele ser executado devido a acusação de corromper a juventude e difundir ideias contrárias à religião tradicional.
Vendo o sofrimento dos seus discípulos diante de sua morte, Sócrates percebe que precisa explicar melhor sobre a realidade da alma e porque não é preciso sofrimento.
O filósofo explora vários argumentos a favor da imortalidade da alma, a fim de demonstrar que existe sim vida após a morte e que a alma vai continuar a existir depois dela.
“O exercício próprio dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?” Sócrates
A partir dessa perspectiva, o corpo parece ser um empecilho ao conhecimento da verdade, podemos pensar que só será possível alcançar a sabedoria e felicidade plena após a morte.
Não para Platão! Se considerarmos o sentido mais profundo de suas palavras. Em sua obra, o último dia da vida do mestre Sócrates é contado a partir de um diálogo literário.
A morte de Sócrates pode ser interpretada como um processo metafórico, sendo esse processo a principal ocupação de um filósofo, que busca contemplar a sabedoria absoluta antes mesmo de morrer.
Pierre Hadot, grande estudioso da filosofia antiga, aponta o diálogo platônico como sendo essencial a transformação do ser, um exercício espiritual.
É através do exercício do diálogo, da prática espiritual para o conhecimento, que está inserida a questão da vida e da morte no Fédon. Para Platão o uso da dialética é o que qualifica o filósofo como sendo aquele que busca a verdade em si.
Podemos dizer que para Platão buscar sabedoria consiste em preparar-se para morrer e em estar morto, de modo a desfrutar o que é próprio da alma antes mesmo de se desligar do corpo.
Verdadeira Identidade
Embora Platão seja constantemente apontado como o fundador do pensamento filosófico que separa e contrapõe o corpo e a alma, o dualismo platônico, através da comparação com a filosofia Advaita Vedanta, não dualista, buscaremos entender a dualidade como partes de uma coisa só.
Muito do que sabemos sobre Platão a respeito de seus diálogos e mitos pode nos remeter à famosa obra indiana sobre autoconhecimento (ou yoga), o Bhagavad Gita, um dos textos canônicos da escola hindu Advaita Vedanta.
O poema místico-filosófico de mais de 5.000 anos da tradição milenar indiana está contido no Mahabharata, o grande poema épico escrito em sânscrito, que difunde os princípios do hinduísmo.
O Bhagavad Gita, que pode ser traduzido como “A Canção do Divino”, é o mais importante texto indiano, de onde provém grandes ensinamentos sobre espiritualidade e onde encontramos a raiz do yoga.
Ao mesmo tempo em que o Gita apoia o ideal de renúncia completa do mundo em favor da autorrealização e libertação, propõe também a renúncia interna, em vez de externa.
“Sua escolha é somente quanto à ação, jamais quanto ao resultado. Não queira ser a causa do resultado da ação, tampouco esteja sujeito a inação”. BHAGAVAD GITA
Não é saindo desse plano para outro diferente que se chegará à salvação, é preciso haver uma mudança na forma de estar no mundo, refletindo no interior da própria ação.
No Bhagavad Gita é possível entender noções fundamentais acerca da transmigração através do diálogo entre Krsna, representante da Suprema Personalidade de Deus, e seu discípulo, Arjuna.
Conforme relata a obra, durante uma grande guerra que teria ocorrido no Norte da Índia, um guerreiro (Arjuna), em pleno campo de batalha, vive um impasse:
Lutar e matar pessoas que ama ou renunciar seu dever (dharma) de guerreiro?
A mensagem narrada pelo Gita busca levar o indivíduo a compreensão da diferença entre alma (eu verdadeiro) e corpo. Arjuna simboliza a confusão da alma que transmigra e o cenário de guerra representa um risco eminente de morte.
A verdadeira identidade é espiritual e temos a oportunidade na vida humana de desenvolver a consciência pura e perfeita de nós mesmos.
Krsna fala também sobre a inevitabilidade da morte e do renascimento, uma vez que para aqueles que nascem à morte é certa e para aqueles que morrem o nascimento é certo.
Para Shankara o estudo da filosofia não dualista (advaita) leva a transformação do ser. Isto é, quando o indivíduo busca a sabedoria para se identificar com a essência do ser, ele se aproxima da libertação do sofrimento causado pela ignorância.
Sankara, como grande admirador do Bhagavad Gita e um dos seus comentadores mais importantes, acreditava que, embora o universo dos fenômenos seja de fato experimentado, ele não é a verdadeira realidade.
Podemos destacar vários pontos em comum entre Sankara e Platão, dentre eles a forma com que apresentam seu discurso filosófico, utilizando-se da literatura para composição das obras.
Ambos os filósofos apresentam diálogos repletos de simbolismos e possuem uma notável capacidade de falar sobre temas sutis, mas extremamente pertinentes à humanidades.
Existem realmente muitas analogias entre as atitudes filosóficas da Antiguidade e as do Oriente, analogias que não podem ser explicadas por influências históricas.
Platão e suas obras como resultados da cultura grega, nos proporciona uma justificativa mais racional, através de uma linguagem lógica e organizadora. Enquanto que o Bhagavad Gita nos transmite maior expressividade, própria da poesia, de forma mística e alegórica.
Muito além de nomenclaturas e formas de narrativas, o objetivo das tradições apresentas é nos servir como caminhos para nós mesmos. Uma vez que cada ser é único no mundo, cada caminho de autoconhecimento também será único.
Vivemos tentando constantemente nos completar, satisfazer nossos desejos e muitas vezes projetamos nossas expectativas nas pessoas e no mundo à nossa volta. O que ainda está nos faltando para sermos felizes?
No próximo texto vamos entender melhor como a consciência de quem somos, desenvolvida através da prática de uma vida filosófica, é para os filósofos Platão e Shankara a resposta para uma vida sem sofrimento.
Se você pensa que isso é para pessoas iluminadas e que você está muito longe disso, saiba que o filósofo não é um sábio já pronto, mas aquele que busca o saber e tem plena consciência que ainda há um longo caminho de dedicação.
Luiza Goulart
Filósofa, dançarina, professora e coreógrafa. Membra do conselho internacional de Dança da Unesco, Luiza também gosta de estudar sobre empreendedorismo e habilidades comportamentais que só você tem.